Na margem sul, o deserto só se faz sentir a partir das hipnóticas malhas de guitarra dos Mars County! Músicos, público e organização transpiram talento, garra, dedicação e um enorme espírito de comunhão. Como António Côrte-Real grita no final da festa: “Margem Sul é outra cena!”
No passado sábado fomos até ao mítico Cine Teatro do Ginásio Clube de Corroios para assistir à segunda sessão do Festival de Música Moderna, organizado pela Junta de Freguesia de Corroios desde 1996, e que já vai na resistente vigésima sétima edição. Ao forte valor simbólico – do peso histórico do certame – juntou-se uma dimensão emocional.
A primeira sensação que tivemos foi a de que haveria mais máquinas fotográficas do que instrumentos musicais na sala, tantos eram os fotógrafos presentes. Uns mais experientes, outros ainda em formação… mas bastou um minuto para avistarmos uma das maiores referências nacionais que nos acompanha desde o tempo do saudoso Blitz – o grande Cameraman Metálico.
Os Mars County foram a primeira banda a pisar o palco e a nossa atenção foi imediatamente absorvida para o som hipnótico de uma dupla de guitarras provenientes do mais soalheiro deserto americano. Só olhando bem para o palco é que percebemos que não há baixista. A bateria é mais do que suficientemente pujante para nos guiar ritmicamente pelas suas cavalgantes divagações psicadélicas. A voz principal é ao mesmo tempo doce e profunda, enchendo o som dos Mars County com os tons graves que nos prendem à terra. Para aumentar a densidade, junta-se uma voz feminina cheia de textura e alma.
Temperando o psicadelismo revivalista ora com uma doce sensibilidade pop, ora com vigorosos instintos roqueiros, a banda de Lisboa foi apurando um som muito próprio e cativante. A sua atuação no festival de Corroios, e a audição em repeat dos apenas três temas disponibilizados nas plataformas de streaming, deixam-nos cheios de apetite para as suas próximas gravações.
Seguem-se os Doutor Assério, vestidos a rigor com as suas batas hospitalares, um sentido de humor desarmante e uma energia adolescente. Ou será um sentido de humor adolescente e uma energia desarmante? Não sabemos, só vendo!
As comparações com os Ena Pá 2000 são inevitáveis, não apenas pelo conteúdo abandalhado e bem driblado das suas letras, como na competência com que tocam os seus instrumentos. Ainda assim, o registo musical é bem diferente. Os Doutor Assério afirmam que tocam punk romântico e não mentem, enriquecendo esta matriz com laivos rockabilly e heavy metal.
Durante toda a atuação da banda, o público dança tanto ou mais do que se ri, aproveitando todas as pausas entre as músicas para descansar e, claro, rir-se ainda mais um bocado com os apontamentos humorísticos dos bracarenses. Para além de piadas e bom punk, sente-se ainda uma energia especial, talvez de comunhão da comunidade roqueira, que se faz sentir pelos elogios aos colegas músicos, e ao Cameraman Metálico, e pela conclusão do seu alinhamento, em que o vocalista se dirige ao público e entrega a sua guitarra a um dos presentes para os acordes finais.
A pausa para refrescar trouxe-nos uma boa surpresa. O guitarrista improvisado de há minutos era, na verdade, um dos guitarristas dos Barba de Sapo – que tínhamos visto no Titanic Sur Mer no mês passado. Imbuídos pelo espírito de comunhão, embrenhámo-nos numa interessante conversa, que começou pelo punk e pelas influências dos Barba de Sapo, passando pelas vivências de quem cresceu nos subúrbios de Lisboa – “mesmo ali ao lado” – durante as décadas de 80 e 90, e concluiu com o poder do rock, dos amigos do peito e do amor salvífico.
A conversa foi tão boa que, infelizmente, perdemos a atuação dos Stereophobia, a quem gostaríamos de pedir as nossas humildes desculpas e a quem prometemos ir ver assim que possível.
Para finalizar esta segunda sessão do Festival de Corroios, a organização convidou os Cörte Real, que brindaram o público com o seu hard rock competente e bem oleado. A banda composta por músicos rodados não deixou os seus créditos por mãos alheias e deixou o público agarrado ao palco. Fast Eddie Nelson juntou-se ao grupo para as últimas três músicas do evento – uma sua, uma dos Cörte Real e uma versão memorável do clássico de Neil Young “Rockin’ in the Free World”!
Não poderia haver melhor forma de celebrar o Festival, a música e toda a movida rock da Margem Sul! Aos cinco músicos, juntou-se o vocalista dos açorianos SleepWalkers e o ”ocupa” vocalista dos Doutor Assério, para em uníssono com o público entoarem o hino do músico canadiano.
Nota: O Festival ainda terá mais duas sessões: dias 18 e 25 de março! A final é no dia 1 de Abril! Ver Cartaz na galeria!