The Dark Side of the Moon, dos Pink Floyd, fez este mês cinquenta anos. Aproveitamos a efeméride para revisitar um dos discos mais sublimes de sempre.
A história dos Floyd é marcada por um trauma original: a perda prematura do seu primeiro líder, Syd Barrett (por “brain damage”, para citar a canção com o mesmo nome). David Gilmour foi para o seu lugar (contratação de peso!) mas a ausência de Syd – e, talvez pior, a sua presença fantasmática – deixou lastro nos discos seguintes. O segundo álbum, A Saurceful of Secrets, de ’68, ilustra bem o caso, sem o melodismo pop – e a mágica inocência – de Barrett, mas pedindo emprestado o seu imaginário space rock. De tomo para tomo, vão procurando refundar-se; chegados a Meddle, de ’71, já estão muito perto, especialmente na epopeia “Echoes”, onde as palavras de Waters – mais filosóficas e menos sonhadoras do que as de Syd – se fazem sentir. Mas só na rodela seguinte, The Dark Side of the Moon, de ’73, é que esse caminho de amadurecimento e emancipação chega ao fim. De uma só penada, livram-se da sombra criativa de Barrett e urdem a sua absoluta obra-prima.
Waters toma finalmente as rédeas líricas, escrevendo todas as letras, procurando uma inédita clareza, e entrelaçando tudo no mesmo ambicioso conceito: agarrar ou não a vida pelos cornos, desmantelar ou não as suas armadilhas – a ganância, a indiferença, o ódio -, sucumbindo ou não à loucura. O negrume do disco captou bem o pessimismo da sua década, desalentada com a crise petrolífera, a guerra do Vietname e o escândalo de Watergate. Os cínicos anos 70 vendo-se ao espelho…
Do ponto de vista da composição musical, apesar de haver um predomínio das ideias de Waters e de Wright, todos contribuem para o cozinhado. Em contraste com os discos anteriores, há agora uma maior concisão pop, com versos e refrões assobiáveis até pela “plebe iletrada”. Porém, essa maior ênfase no formato-canção não sacrifica a coesão do álbum, bem pelo contrário. Nunca antes fora tão imperativo fruir um disco dos Floyd numa só “viagem”, tudo cuidadosamente entrançado numa ideia e numa estética comum.
Há um predomínio de melodias melancólicas, pinceladas com acordes menores outonais, sugerindo uma tristeza plácida, nunca raivosa (afinal de contas, “hanging on in quiet desperation is the english way”). Muitas das ideias musicais reaparecem mais tarde: progressões de acordes, efeitos sonoros e até pedaços de canções (o regresso a “Breathe” no final de “Time”). Travos quentes e orgânicos – como o coro feminino gospel e um saxofone jazzístico – vão-se espraiando pelo disco. Vozes spoken word, com um sotaque orgulhosamente working class, são outra constante, tecendo as diferentes canções numa só tapeçaria. Quando acaba uma faixa, e começa a seguinte, não há qualquer corte: tudo flui suavemente, como se o álbum fosse uma única grande canção ou curso de água. A qualidade do som é irrepreensível – alvíssaras também para o engenheiro de som Alan Parsons – , para gáudio dos vendedores de alta fidelidade…
Mas nada como dissecarmos cada faixa, que o belo também está nos detalhes.
A colagem de sons “Speak to Me” – que abre o disco – é uma espécie de resumo Europa América do que irá acontecer: o relógio (do tempo que nos foge), a caixa-registadora (da sôfrega ganância), o riso sinistro (da desconcertante loucura) e o helicóptero (do horror da guerra). O tom – sombrio e neurótico – vai crescendo até desembocar milagrosamente na doçura do tema seguinte. “Breathe (In the Air)” não é bem canção, aliás: é mais nuvem, ou algodão, de tal forma tudo é tão suave e delicado.
A paranóia regressa no instrumental “On the Run”, expressando a correria do quotidiano através de uma electrónica tensa e nervosa. Tudo isto acontece, é importante frisar, nos primórdios dos sintetizadores, analógicos e rudimentares, sim, mas ao mesmo tempo prenhes de possibilidades (que este tema tenha nascido um ano antes de Autobahn, dos Kraftwerk, é bem revelador da sua incrível modernidade). Brincando com um arcaico sequenciador, repetem uma série simples de notas num loop infinito, e aceleram-no para um tempo frenético. Como se a base da pizza não fosse suficientemente ansiogénica, são adicionados outros aflitivos ingredientes: passos inquietos, zumbidos futuristas e o altifalante de um aeroporto debitando indicações. No final, ouve-se uma explosão, talvez um avião a despenhar-se. O tema da morte assomando pela primeira vez.
“Time” começa com o barulho ensurdecedor de muitos relógios, sugerindo o lado esmagador da passagem do tempo. Começa depois uma serena introdução – muito ancorada nas brincadeiras melódicas da bateria -, o tempo agora arrastando-se, enfadonho. Até que a canção propriamente dita arranca, com a guitarra e o órgão enlaçados num saboroso groove. O solo de guitarra é de uma economia espantosa, lento e melódico e memorável, dizendo muito com muito pouco. Gilmour, portanto…
A progressão de acordes no piano de “The Great Gig in the Sky” é linda de morrer (o verbo não é inocente, é justamente esse o tema da canção). Uma voz em spoken word recusa o medo da morte, aceitando-a com dignidade, mas a tristeza da harmonia de Wright destapa outros sentimentos, preparando o terreno para a voz gospel de Clare Torry, sem palavras, apenas emoção pura, arrebatadora, provocando-nos pele de galinha. Todas as canções anteriores desembocam neste vulcão emocional (o lado A chegando ao seu fim).
A orelhuda “Money” enceta o lado B, o single que catapultou Dark Side para a sua condição de um dos discos mais vendidos de sempre (quem não conhece a sua icónica capa?), no top da Billboard durante catorze anos seguidos! (a primeira vez que o erudito prog chega às “massas incultas”). Tudo começa com o dinheiro a fazer de percussão: caixas-registadoras e moedas tilintantes definindo o inusitado compasso de sete por oito. Eis que entra o riff bluesy do baixo, groovy e gingão como poucos. Ao contrário do peso dramático de outros momentos, o tom é agora leve, quase burlesco, uma sátira divertida à vertigem da ganância. O solo de Gilmour vai pelo mesmo caminho, sem a delicadeza poética de outros momentos, optando, e bem, pela bazófia prazerosa do rock’n’roll. As vozes spoken word do final – malta a dizer “eu é que tinha razão” – anunciam o tema da próxima canção: o conflito, a violência, a guerra, fundados na armadilha do “nós e os outros”.
O órgão Hammond dá gravidade, e uma importância quase religiosa, a “Us and Them”. Os acordes do piano, o lamento do saxofone e a voz quase sussurante vão todos no sentido de uma tristeza resignada, de quem vê a humanidade sempre a cair no mesmo estúpido alçapão, sem nada poder fazer para a impedir. Os ecos na palavra “us” e “them” convidam à ligação e à empatia, quando tudo o resto conspira no sentido contrário.
Se um dos legados de Dark Side foi emancipar os Floyd do tripanço barretiano, “Any Colour You Like” é uma recaída – bem-vinda! – no psicadelismo de outrora. Dois acordes sustentam o edifício, enquanto um sintetizador dissonante e futurista – com desordenados ecos – tenta tudo para mandar os pilares abaixo. A guitarra improvisa também como se não houvesse amanhã, mas é mais gentil, sem a desarmonia propositada das teclas de Wright.
“Brain Damage” é bela e delicada como o era Barrett, o que não será certamente por acaso: a canção evoca a memória do amigo e mestre, aproveitando para reflectir sobre o mistério da loucura. É aqui que o título do disco aparece – “I’ll see you on the dark side of the moon” -, porque todos temos o nosso lado sombrio, o nosso lado vulnerável, o nosso lado louco…
E eis que “Eclipse” encerra Dark Side, com a fanfarra que o disco merece: uma celebração quase pagã do milagre da vida, assumida na sua totalidade. No fim, há um twist, com palavras enigmáticas: “mas o sol é eclipsado pela lua”. De que raio fala Waters? Da loucura? Da indiferença? Da própria morte? Não sabemos responder. Cada qual fará a sua interpretação. A experiência quase cinematográfica de Dark Side é única para cada ouvinte, e esse espaço para nele nos projectarmos é um dos seus grandes trunfos. Perca-se nele…