Os 10 anos do segundo disco de Samuel Úria, O Grande Medo do Pequeno Mundo, foram o mote para dois concertos, esgotados há semanas, no Tivoli em Lisboa, e ontem no Porto, na Casa da Música.
Este é o disco que marca a viragem na carreira de Samuel Úria. Há cerca de uma década que o músico abandonou o seu trabalho principal como professor de Educação Visual e Tecnológica e dedicou-se a 100% às canções. Certamente que se perdeu um bom professor de EVT, mas ficámos a ganhar um enorme escritor de canções em full-time.
O concerto prometia ser uma grande festa de aniversário, com direito a convidados de renome, e não desiludiu. A começar pela estética em palco, com uma enorme cortina de veludo vermelha, a fazer lembrar as usadas nos teatros, passando pelas mais bonitas botas alguma vez usadas em palco “en pendant” com a cortina, e fazendo do Samuel uma espécie de “Dorothy de Tondela” (“there’s no place like home”).
O “pai” do disco aniversariante, fez-se acompanhar pela sua banda, Jónatas Pires, Silas Ferreira, António Quintino, Tiago Ramos e o nem sempre presente Miguel Sousa. Estes dois últimos, por não terem sido apresentados em Lisboa, tiveram direito a duplas e triplas apresentações no Porto, inclusive com nomes completos. Esteve também presente um coro que levou a “metade gospel” à Casa da Música.
O concerto começou com “Prelúdio”, primeira faixa do disco, mas logo o alinhamento original do álbum foi quebrado, o que em nada comprometeu a noite, pela canção “Espalha Brasas”, para mim, uma das melhores do álbum.
O primeiro convidado da noite, Jorge Rivotti, professor e antigo colega de profissão de Samuel Úria numa escola de Lisboa, que cantou “O Deserto” e um original seu, “Fado Emaranhado” com letra de Samuel Úria, letra essa que andou perdida durante 10 anos, confidenciou Rivotti, mas que irá integrar o seu novo disco.
Já a “solo” seguiram-se as canções “Pequeno Mundo” e “Para Ninguém”, esta última apesar de não estar incluída no disco original, está no vinil do álbum que, segundo Samuel e em jeito de graça, é o formato recomendado para os melómanos.
Um dos pontos altos da noite foi partilhado com Manel Cruz com a canção que a SPA considerou a melhor de 2014, “Lenço Enxuto”. Em dueto, ao vivo, com banda e coro, a canção toma uma proporção épica, muito difícil de colocar em palavras. A colaboração entre os dois continuou com “Ninguém é Quem Queria Ser” dos Foge Foge Bandido, um dos projectos de Manel Cruz.
Passada a emoção invicta trazida com o ex-Ornatos, voltou-se ao formato sem convidados, com a canção “Tema Triste” a hidden-track de O Grande Medo do Pequeno Mundo escrito por Samuel na sua juventude, uma canção que se propõe ser um tema grunge, mas tem muito mais do que o género musical dos anos 90.
Voltamos então aos duetos com Márcia. Os dois partilharam em palco não só canções, mas também histórias de uma amizade de muitos anos. “Eu Seguro”, segundo single do disco, e também “Menina”, incluída no álbum da Márcia, Casulo, que igualmente comemora o seu décimo aniversário este ano, canção escrita a meias com Samuel.
“Essa Voz” foi o tema que se seguiu, canção escrita a pensar na talentosa Inês Maria Meneses, mas que também se podia aplicar ao próprio do escritor quando ouvimos “que nunca te afete a mudez” ou “que nunca me afete a surdez”
Foi ainda apresentada uma canção que não chegou ao álbum, “Onomatopeia”, canção que foi escrita para uma peça de teatro. Samuel aproveitou para recordar as suas constantes viagens entre Lisboa e Guimarães para os ensaios da peça e como esse foi um dos seus últimos projectos com a música em regime de part-time. A canção é gêmea de “Estrondo Mudo”, a mesma música, letra diferente, e foi essa que se seguiu.
Seguiu-se a participação dos “Ujos”, Miguel Araújo e António Zambujo, para a interpretação de “Triunvirato”. Três cantores em palco para homenagear três grandes nomes e influências principais de Samuel Úria, Cash, Cohen e Dylan. Ainda com o trio em palco seguiu-se “Império”, não fazendo parte do disco que comemora 10 anos, foi escolhida para a segunda parte da colaboração, por ser uma das melhores canções do Samuel e, como tal, muito admirada pelo duo Zambujo e Araújo.
Inspirada num poema de António Pocinho, “Em Caso de Fogo”, que também é o nome da canção, foi a que se seguiu. Sem Gonçalo Gonçalves, que também dá voz no álbum.
O concerto aproximava-se do fim, o “Forasteiro”, primeiro single e durante muito tempo, a única amostra do disco, um final apoteótico com uma energia imensurável com direito a saída com o já conhecido “gingar de anca” e uma espécie de “moonwalk beirão”.
Mas nada durante o concerto nos preparava para o que aconteceu no encore.
Se, por regra geral, os concertos acabam com finais cheios de força anímica, este não foi assim, e talvez por isso digo que não estávamos preparados. A última canção a ser interpretado foi “Armelim de Jesus”. O palco, que quase sempre esteve com uma luz vermelha, fremente, passou a ter uma luz fria que contrapunha com o calor das palavras de Samuel sobre o seu avô Armelim. Apesar de acompanhado em palco, o momento foi de um Samuel sozinho com as suas palavras e emoções, despido de ornamentos e a abrir o coração às mais de 1200 pessoas que estavam na Casa da Música que ficaram coladas às cadeiras quase a suster a respiração para não quebrar o momento.
E assim se findou um dos mais bonitos concertos, do ano, da década ou quiçá de uma carreira. Se perderam algum destes concertos por estarem esgotados, não deixem escapar em 2033 os 20 anos de O Grande Medo do Pequeno Mundo.
Fotografias de Rita Carmo, cedidas pela organização.