Fim de tarde e noite bonitas. Ontem, matámos um enorme Desejo e fizemos do samba e do soul-funk um local de bom abrigo. Tudo isto no Festival Jardins do Marquês, em Oeiras.
O Festival Jardins do Marquês vai já na sua terceira edição e o Altamont, naturalmente, tem sempre picado o ponto. Local agradável e melhorado (a nova localização do palco principal é de louvar), onde gente simpática e festivaleira se nota em cada olhar, mas também com um forte vento que se tem sentido nestes últimos dias pela vila de Oeiras e arredores. Este ano, tudo começou a 27 deste mês, e acabará a 5 de julho. Serão, ao todo, sete dias de música, muita música, num total de 28 concertos. O cartaz é sempre muito diversificado, como convém em festivais de âmbito mais genérico. No entanto, a língua portuguesa tem importante destaque em todas as edições. Ontem, parecia que o Brasil havia aterrado em Oeiras. Quatro concertos de sotaque transatlântico, começando a festa pelas 19.30 horas, e terminando já depois da meia-noite. São dois, os palcos, como já acontecia na edição anterior. Samba, para começar, depois um pouco da mais nova e interessante MPB, seguindo-se uma “boys band de boteco” (a definição é dos próprios “Pedrinhos”) e um caldeirão de soul e tantas outras coisas para terminar. Vamos aos nomes, e pela ordem de apresentação: Roberta Sá, Bala Desejo, Jovem Dionísio e Liniker.

Roberta Sá não é muito conhecida por cá, por isso não foi de estranhar a boa quantidade de brasileiros à frente do Palco Nortada para ouvir o samba bom da brasileira de Natal, Rio Grande do Norte. Tudo começou por se animar (e bem) com “Alguém me Avisou” e “Alô Fevereiro”. O clássico de Dona Ivone Lara continua e continuará a render! E com “Água da Minha Sede”, do grande Zeca Pagodinho, o estouro foi ainda maior. Estava lançado o mote, e assim foi até ao fim. A base do concerto foi o que Roberta Sá tem levado a cabo há já algum tempo, intitulado SambaSá. Com “Me Erra”, tema de Adriana Calcanhotto, samba mais lento, menos ritmado e puxando às dores melosas do amor, Roberta Sá mostrou-se igualmente senhora do palco e do estilo que é a base da sua carreira, que já vai com bons anos de existência.
Com “Maneiras”, de novo um tema também popularizado por Zeca Pagodinho, voltou o samba mais típico, fazendo um imenso “cafuné” descontraído em todos nós. E assim, todos fomos “gente que vive chorando de barriga cheia”, alegres e bem dispostos. O show SambaSá também é uma homenagem às grandes mulheres do samba brasileiro, por isso Alcione e o seu “Sufoco” também entraram no alinhamento. Muita gente a cantar cada palavra desse icónico samba, e “mil razões” houve para esse canto coletivo. Alcione é gigante, e Roberta Sá sabe bem disso. “Na hora do vamo vê”, salve o samba brasileiro! Foi um ótimo final de tarde. Com “sorriso aberto e o paraíso perto”!

Bala Desejo é uma banda que dificilmente se explica, a não ser por razões cósmicas. Como se fosse possível juntar nos nossos dias inúmeras “reencarnações” do passado. Bala Desejo são os novos Doces Bárbaros, os novos Novos Baianos, um milagre festivo, acolhedor e messiânico: ainda há esperança para a nova MPB! E assim, o futuro poderá bem ser um regresso ao passado com temperos da geração presente. Vieram a Oeiras apresentar o Bala Baile Show (as semelhanças com o icónico Bicho Baile Show, de Caetano, são mais que muitas e nada ingénuas) e foi um autêntico turbilhão de “passarinhas” sonoras ecoando por todo o lugar!
O primeiro convidado da banda Bala Desejo foi Dino d’Santiago, que com eles cantou “Oceano”, do grande alagoano Djavan! Muito bonito, sem dúvida. Ainda houve espaço e tempo para um funaná maroto e depois tudo seguiu o rumo que nos havia trazido até àquele instante: festa, ritmo, psicadelismo hippie em língua lusa, espanhola e “suco de maracujá”! Seguiu-se “Nem Luxo, Nem Lixo”, da eterna estrela Rita Lee, “uma pessoa comum, filha de Deus”, como todos nós, afinal. Os Bala Desejo também convidaram Mahmundi (Marcela Vale) para cantar esse conhecido tema da já saudosa e perpétua menina paulistana!
Como bem se sabe, e até ao presente momento, o único disco dos Bala Desejo teve como base o recolhimento dos seus quatro elementos em tempo de pandemia. Todos juntos fizeram um álbum que fosse o reverso do clima tenebroso que se vivia. A exceção foi “No Sofá”, que também ontem foi tocada, como espécie de despedida desse passado ainda tão presente. Aquele caos final foi bem esclarecedor dessa intenção.
Já perto do fim, Tomás Wallenstein foi chamado ao palco para cantar “Toda Menina Baiana”, do mestre Gilberto Gil. De novo com Mahmundi e o nosso Capitão Fausto em palco, cantou-se e dançou-se “Baile de Máscaras (Recarnaval)”. Foi um delírio estupendo, todo o concerto!

Depois, os meninos da banda Jovem Dionísio trouxeram ao Palco Nortada um pop-rock meio sambado e meio funk, por vezes. Nada de muito novo, nada de muito memorável, mas com alguns hits radiofónicos na manga, desde logo “Acorda, Pedrinho”. Na verdade, de uma banda tão nova e em clara ascensão, esperávamos mais garra, mais vontade, algo que nem sempre se notou. Meio apagados em palco (as luzes e os seus efeitos também não ajudaram), lá foram tentando puxar pelas vozes do público, o que aconteceu bastantes vezes, sobretudo tendo em conta que apresentavam em palco o seu primeiro e único registo discográfico até ao momento. Os Jovem Dionísio terão ainda muito caminho pela frente, e isso é bom. No entanto, revelaram-se mais jovens que dionisíacos, de tão pouco festivos e insanos, como o deus Dioniso costumava ser. Talvez por isso, há que ter em conta a dura realidade das coisas: somos todos mais humanos do que qualquer outra coisa. Estão perdoados, portanto, os rapazes de Curitiba. E depois de concursos de dança em palco (!), pequenas histórias sobre o local de onde vêm, lá “acordaram o Pedrinho” para contentamento dos presentes. Fim.

O último dos quatro concertos do quarto dia do Festival Jardins do Marquês estava reservado para Liniker e para o seu soul-funk, a lembrar, a espaços e com as devidas distâncias, o mítico Tim Maia. E se este é claramente um enorme elogio a Liniker, a verdade é que estamos a ser simpáticos, porque também simpático foi o concerto que nos foi apresentado. A artista, como já muitos saberão, deve o seu nome ao famoso futebolista Gary Lineker. O pai da cantora, compositora, escritora e muito mais, adorava o jogador inglês, por isso resolveu escolhê-lo para a criança nascida em julho de 1995. De voz grossa (não se define nem como ser masculino, nem como ser feminino, embora seja uma mulher trans) e poderosa, Liniker foi marcando um ou outro “gol de placa”, por vezes passeando pelos caminhos (embora tímidos) do samba, requebrando, dançando o concerto todo, notoriamente feliz em apresentar em Oeiras o seu mais recente álbum, Índigo Borboleta Anil, de 2021. Foi também cantando alguns temas dos dois primeiros discos, Remonta e Goela Abaixo. Um deles, composto a caminho do Brasil num avião da TAP, foi “Bem Bom” – (“Qual é o gosto da lágrima na língua?”) – e quando todos esperávamos que Mahmundi viesse a palco cantá-lo, como aconteceu em disco, tal coisa não ocorreu. Seguiu-se “Calmô”, tema gravado em Lisboa e um dos momentos mais exuberantes do disco de 2019, o já referido Goela Abaixo.
Djavan esteve omnipresente nos Jardins do Marquês, uma vez que o mesmo “Oceano” que havia sido tocado antes, regressou ao palco através da voz de Liniker. Enquanto cantava, algumas lágrimas escorreram-lhe pelo rosto. De seguida, e de novo do mestre Djavan, a bonita e ritmada “Aquele Um”, do mítico e velhinho álbum Alumbramento, de início da década de noventa. “Tanta Saudade”, mais um tema do alagoano, que Chico Buarque também cantou, foi outro momento de valor. Quase a terminar, a inevitável “Baby 95”, cantada exclusivamente pelo público nos primeiros momentos do tema. Bonito de se ver e ouvir.
Foi um final de tarde e noite de boa memória! Hoje, mais logo, regressaremos ao mesmo local. Uma banda mítica (Cor do Som) e a deusa de Santo Amaro da Purificação (Maria Bethânia) esperarão por nós. Estamos desejosos desses encontros. É esperar, que tudo se concretizará.
Se brincar,os portugueses conhecem mais músicas brasileira do que os brasileiros,estou pasmo!