O novo álbum de Amélia Muge, Amélias, é uma bonita homenagem ao canto entre mulheres.
O título, Amélias – assim, no plural -, explica logo a essência do disco: Amélia Muge desdobrando-se em muitas vozes, harmonizando consigo própria. Alguns temas são à capela, levando o exercício ao extremo, mas o mais habitual é haver percussão de fundo – discreta, brincalhona, mais preocupada em desenhar ambientes do que em servir de relógio. Mais raramente, há a intrusão de outros instrumentos – violoncelo, filiscórnio (não nos perguntem o que raio isso é!) e outras texturas bizarras – mas mesmo nestes casos é sua majestade a voz – perdão, vozes – que está no centro.
Vozes femininas, é importante acrescentar, porque Amélias mais não é do que uma terna homenagem aos coros femininos de raiz tradicional. Saramago, no Memorial do Convento, escreve que são as conversas das mulheres que seguram o mundo na sua órbita, mas desconfiamos que o canto feminino também deve ajudar. A pequena Amélia que o diga, tinha três, quatro anos, na Maputo da sua infância, quando avistou aquele magote de amas negras junto ao mar profundo, todas cantando e dançando no mesmo mágico pulsar – a sua memória mais antiga e profunda.
O single “Chove Muito, Chove Tanto”, com letra da sua irmã Teresa, debruça-se justamente sobre a meninice das manas Muge em África, “quando não tinha sapatos, quando chupava capim”. Daí os seus africanismos musicais, que nos fazem lembrar Zeca e João Afonso. Não será por acaso: os três autores passaram parte da infância em Moçambique.
Em Portugal, Amélia Muge encontraria pelo país fora a mesma beleza ancestral no canto a vozes de mulheres, polifónico e à capela (já burocratizado e tudo com uma candidatura a património imaterial da humanidade). Amélias reinventa essa cumplicidade do colectivo feminino com a “batota” dos overdubs: só uma mulher fingindo que é muitas.
Quando pensamos em harmonias vocais vem-nos à cabeça coisas muito penteadinhas, como o doo-wop ou os Beach Boys. Ora as nossas Amélias são o contrário disso: fracturadas, quase cubistas. Nada que nos espante quando Amélia Muge é uma fervorosa fã da obra de Laurie Anderson. Não sabemos se também frequenta o Philip Glass mas algumas harmonias – robóticas e minimais – assim o sugerem.
Quando convidamos Anderson e Glass para a conversa, queremos chamar a atenção para o modernismo da linguagem deste disco. O que pode parecer estranho quando é sabido o quanto Amélia Muge vai beber ao folclore português (e não só: o tango e o Mediterrâneo de Michales Loukovikas também passam por aqui). Este disco move-se sempre neste diálogo entre o arcaico e o futurista, ou, nas próprias palavras de Amélia, “entre o canto dos Neanderthal e o Hal 9000 do 2001 Odisseia no Espaço”.
Na sua reinvenção das raízes, esconjurando dogmas com um sempre inquieto experimentalismo, Amélia insere-se na bonita tradição encetada por José Afonso, da qual os Gaiteiros de Lisboa também são herdeiros (não há coincidências: José Martins, cúmplice de Amélia Muge na sofisticada direcção musical, já integrou a banda).
Como o pai Zeca, e os manos Gaiteiros, também Amélias namora com o nonsense de raiz popular, de que tanto gostamos: “Belzebu está constipado”, a “cabra manca, atrás de uma velha”, “a Santa Engrácia de pernas para o ar”… Não se pense, porém, que o sentido de humor deste disco se cinge ao surrealismo castiço das suas palavras. É a própria música que é engraçada, como as brincadeiras tontas das crianças, subvertendo com malícia tudo o que é convencional e sisudo.
O veredicto só pode ser um: um dos discos do ano, portugueses e não só. Como aliás acontece sempre que nos brinda com mais uma rodela. É esse o seu destino. O fabuloso destino de Amélia…