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Little Richard: o adeus do Senhor Rock and roll

Deixou-nos um dos primeiros. Deixou-nos um dos maiores. Deixou-nos um dos únicos. Little Richard, pioneiro em tantas coisas, partiu aos 87 anos, depois de uma vida que vale por muitas.

Nascido numa pequena cidade da Georgia, em 1932, Richard Wayne Penniman foi o terceiro de 12 filhos. No pai, Charles Penniman, teve talvez a raiz que explica tanta coisa. “Bud”, como era conhecido, era pastor de uma igreja local, mas era muitas outras coisas, como contrabandista e dono de um clube noturno, na parte negra da cidade. A alcunha de Little Richard vem desses tempos, dada a magreza do rapaz que passava a vida a fazer tropelias, a tocar ritmos em qualquer caixote do lixo que encontrasse e a vestir-se com as roupas da mãe, sempre que possível.

Foi na igreja, tal como tantos artistas negros desse tempo e até aos dias de hoje, que o pequeno Richard conheceu a música, juntamente com a família. Foi aí que a sua voz se desenhou e começou a dar nas vistas. Mas até aí já se via o rebelde em potência, sendo admoestado várias vezes pelo seu excesso de entusiasmo. Aos 14 anos pisou pela primeira vez um palco e foi por essa altura que foi ouvido por Sister Rosetta Tharpe a cantar as suas músicas. O portento do gospel convidou o rapaz a abrir alguns dos seus concertos, e o bicho da actuação ficou para sempre no rapaz, que não queria outra coisa.

Na escola era um aluno mediano com uma predilecção por arranjar problemas. Ainda assim, foi aí que aprendeu a tocar saxofone e entrou para a banda da escola, ao mesmo tempo que desenvolvia o gosto pelo piano, que lhe vinha desde pequeno.

Em casa, as coisas não eram fáceis entre Richard e o pai, que não conseguia, ainda nos severos anos 40, entender a indisciplina e os gestos efeminados do filho. O pequeno tinha decidido, e aos 16 anos saiu de casa, juntando-se a vários espectáculos itinerantes. Nesses, cantava e representava, como um verdadeiro artista de variedades. O domínio do palco demonstrado mais tarde não havia nascido expontaneamente, e sim criado meticulosamente durante anos na estrada, perante multidões muito diferentes entre si.

A meio da década de 50, Little Richard havia crescido, ainda que nunca tivesse perdido o diminutivo. Começou a compor, pegando nas influências que tinha apanhado de casa e da igreja – o gospel –  mais o que tinha aprendido na estrada – o rythm and blues. A isto juntou um sentido pop e de espectáculo que lhe eram inatos, e foi essa a combinação que havia de fazer a diferença e dar origem a um explosivo movimento que se chamaria, mais tarde, rock n roll. No final de 1955 lança o primeiro single em nome próprio, uma coisinha chamada…”Tutti-Frutti”. O sucesso foi imediato e o mundo de Richard mudou. Aliás, todo o mundo mudou.

O sucesso foi instantâneo e alimentado por singles demolidores e extremamente populares como “Lucille” ou “Long Tall Sally”. Em 1956, Richard já dava concertos pelo país fora, espectáculos marcados, aqui e ali, pela convivência entre audiências negras e brancas. Esse é, aliás, um dos enormes contributos de Richard: o crossover entre públicos, ajudando a levar a semente do rock n roll do lado negro para o lado branco, mais comercial e endinheirado. Em 1956, Richard continua a cuspir singles de sucesso e o primeiro, “Tutti-Frutti”, conhece versões por parte de artistas conhecidos como Elvis Presley, Pat Boone ou Bill Haley.

Esses foram anos frenéticos, com muitos quilómetros de estrada, visitas rápidas mas frequentes aos estúdios para gravar mais uma pérola e até a entrada no cinema, o passo natural para uma nova estrela musical. Em Inglaterra, onde a música era conservadora, os míudos começaram a ouvir na rádio umas coisas estranhas, novas e excitantes. Os nomes que lhes chegavam eram Little Richard, Elvis Presley, Chuck Berry, Jerry Lee Lewis e algum blues da autoria de Muddy Waters ou Lightnin’ Hopkins, entre outros. Entre os rapazes que, ainda de calções, não perdiam pitada, estavam alguns nomes que talvez conheçam: uns tais de Keith Richards e John Lennon. Estava assim lançada, do outro lado do Atlântico, a semente do rock n roll que, anos depois, viria tomar de assalto os próprios EUA.

Com o sucesso e o dinheiro a entrar, Little Richards andava continuamente em digressão, e metido em sarilhos. Casou-se, mas gostava mais de homens do que de mulheres, embora não fosse esquisito. Mais, foi detido por voyeurismo, prática de que parece ter sido particularmente adepto ao longo da vida. Nesses primeiros tempos, os excessos eram ainda apenas sexuais, já que as drogas só mais tarde viriam a entrar na sua vida.

No virar da década, tem uma epifania e decide mudar de vida e dedicar-se à igreja. Esse período dura cerca de cinco anos, mas o chamamento do rock e dos palcos foi mais forte. Regressou à estrada e aos discos, embora nunca tenha recuperado a criatividade e inovação das suas criações de 55-56. Nessa altura, parte em digressão pela Europa, secundado por uns jovens The Beatles como banda de abertura, que tiveram assim a felicidade de conhecer o seu herói, e aprender com ele.

Em 1964, cruza-se com outro gigante do futuro, quando contratou para a sua banda um jovem guitarrista, de seu nome Jimi Hendrix. Este, depois de sair da tropa, cruzou o país como músico contratado em inúmeras bandas, como a de Ike & Tina Turner. O período com Richard durou pouco: Hendrix foi despedido depois de vários avisos, por não se limitar a tocar o básico lá atrás, por nem sempre chegar a horas e por se comportar de forma extravagante, algo só permitido ao próprio Richard. Este procurava músicos eficientes, não particularmente criativos, e que não arranjassem problemas. O virtuosismo de Hendrix, ainda nascente, não tinha para o seu patrão qualquer utilidade.

O período de ouro de Little Richard ficara para trás na segunda metade dos anos 60, superado pelo rock branco americano e inglês e pelos sons funk e soul da Motown, em cujo nascimento também havia sido decisivo.

Little Richard não parou de dar concertos nem foi esquecido, chegando a receber um célebre elogio daquele que é apontado como o outro “Rei do rock n roll”, Elvis Presley. Em 1969, Presley afirmou publicamente a influência de Richard na sua música e atirou mesmo: “He’s the greatest”. Veio tarde, mas Richard terá gostado.

Nas décadas seguintes, e até há bem pouco tempo, Little Richard tornou-se numa figura do entretenimento, mais do que necessariamente uma figura da música. Entrou em filmes e inúmeros talk-shows, foi personagem dos Simpsons, ia dando entrevistas. Mas quase sempre como “pai fundador” e “velha glória”. Na verdade, o seu marco havia sido firmemente plantado nos longínquos anos 50.

Para além das suas músicas, da junção de soul, funk, blues e gospel num híbrido que haveria de se chamar rock n roll, a importância histórica e incontornável de Little Richard vem da sua própria figura. Um negro magrinho, com uma perna mais curta que a outra, que usava maquilhagem e roupas extravagantes, que emanava uma sexualidade poderosa mas perigosamente confusa podia, afinal, ser uma estrela junto de brancos e negros, para pessoas de todo o mundo. Foi, juntamente com outros como Buddy Holly, Chuck Berry ou Jerry Lee Lewis, um dos grande pioneiros da música que havia de marcar os 50 anos seguintes, e até hoje. E foi o nascimento da figura do músico, e mais particularmente o músico de rock n roll, como um elemento rebelde, perigoso, idiossincrático e livre de espartilhos morais, religiosos ou quaisquer outros.

Sem ele não haveria o Elvis que tivemos, os Stones ou os Beatles que tivemos, o Hendrix ou o Prince que tivemos. Ele estava lá, na semente.

Rock in Power, Senhor Little Richard.

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