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João Peste: A pop não se tem sabido reinventar

No dia do lançamento do novo disco dos Pop Dell’Arte, Transgressio Global, estivemos à conversa com João Peste. Tudo girou à volta da ideia de transgressão, de como a pop não pode desistir de ser transgressiva em relação à estética e ao próprio poder.

Altamont: Transgressio Global parece ser o disco mais abertamente político dos Pop Dell’Arte, quase uma história da transgressão e um apelo à desobediência. É uma resposta aos ares do tempo, à “trumpização” do mundo?

João Peste: É anterior a Trump. Já havia, desde a crise das dívidas soberanas, um ambiente no ar que pedia uma certa irreverência. Os fenómenos Trump e Bolsonaro não são a causa, são já a consequência. A racionalidade neoliberal voltou em força no século XXI a partir dessa crise e foi nesse ambiente que o disco começou a ser pensado. Eu não sei se é o álbum mais político, talvez dê mais nas vistas. Há essa preocupação com essa mentalidade, que nos diz que devemos encarar as pessoas como empresas, que a sociedade é um sítio de concorrência e não de solidariedade. Tudo isso teve efeitos que levaram ao momento em que estamos, ou o momento em que estávamos quando começou a pandemia. Não sei como é que as coisas vão ficar agora. Poderá haver algumas alterações. Porque apesar de tudo esta pandemia mostrou que o estado social é importante. A origem do neoliberalismo é uma crítica ao estado social e às democracias. Eles não estavam tão preocupados com o que se estava a passar nos países do leste da Europa, que tinham outro tipo de economia, a preocupação deles é que nas nossas próprias sociedades o capitalismo estava a desvirtuar-se, por atender a questões sociais. Isso tem estado muito presente nos últimos dez, doze anos, naquela altura da crise da Troika isso foi muito notório. São coisas com as quais não simpatizo e acho que é bom alertar as pessoas para isso.

O vosso primeiro LP, Free Pop, acaba com o “Juramento sem Bandeira”, um hino de resistência durante o cavaquismo, onde também havia um certo ambiente autoritário no ar. Comparando esses dois tempos, qual é que achas que é o mais opressivo?

São coisas diferentes. O cavaquismo, para já, era um fenómeno à escala nacional. O neoliberalismo é uma hegemonia à escala global, com muito maior impacto, portanto. A ideia de um juramento sem bandeira tinha uma conotação anti-nacionalista. O contexto era outro.

Um dos momentos mais bonitos do disco é a vossa versão de “El derecho de vivir en paz”, de Vitor Jara, que, creio, será o primeiro cover a constar num álbum dos Pop Dell’Arte…

Num disco, sim. Já tínhamos feito versões mas nunca tínhamos gravado nenhuma para um álbum dos Pop Dell’Arte. Já havíamos gravado uma versão para uma colectânea de homenagem aos Velvet Underground, com o tema “Lady Godiva Operation”, mas não era num disco nosso. E também fizemos algumas versões ao longo dos anos mas que nunca gravámos em disco. O mais próximo foi o “Little Drama Boy”, mas, lá está, também não era um álbum, era um single de natal. Há uma série de temas que, por vezes, uma pessoa tem a apetência de fazer. Uma vez falei nisso ao Paulo, ele disse que também achava uma óptima ideia, e começámos a trabalhar nisso. Sendo um disco sobre transgressão no século XXI, pode-se questionar o que é que esse tema estava lá a fazer. Mas eu acho que de certa forma é um tema tão deslocado dos tempos actuais, mostra uma maneira de estar na música que é tão distante da de hoje, que ganha um certo exotismo, uma certa ironia provocatória.

As referências da Antiguidade clássica estão muito muito presentes neste disco. De onde vem esse fascínio pela Grécia e Roma antigas. O berço da razão foi também o berço da transgressão?

Eu não poria as coisas nesses termos. Razão e transgressão nem sempre casam bem. A partir do momento em que a racionalidade triunfa na Grécia Antiga perdeu-se esse risco, esse viver no limite. Há uma crítica à racionalidade implícita em Pop Dell’Arte. Neste disco, também há uma transgressão da própria história, através de um presente feito de uma sobreposição de vários tempos. E daí as referências à antiguidade ganharem um novo sentido. O processo foi engraçado porque foi-se construindo um puzzle com coisas que aparentemente pareciam contraditórias mas que depois foram ganhando sentido juntas.

Portanto, a transgressão não estará na antiguidade clássica em si mas sim na coexistência absurda com outros tempos.

Em ambas as coisas. Catulo era um poeta claramente transgressivo na época em que escreveu. A poesia de Anacreonte não era assim tão transgressiva na sua época, até era alguém ligado ao poder, mas mais tarde, com o advento do cristianismo, os seus temas – o excesso do vinho, as festas, o amor aos rapazes – começaram a ser tabu, tornando-se então transgressivos.

Os Pop Dell’Arte sempre trouxeram para sua música referências de outras áreas da cultura, como as artes plásticas e o cinema, etc.. Em Transgressio Global também há este diálogo, desta vez com a literatura clássica e neoclássica. Achas importante que estas fronteiras entre as chamadas alta e baixa cultura sejam derrubadas?

Eu não concordo logo que haja uma alta e baixa cultura. Acho que é uma divisão meio forçada. Há no disco muitas referências pop e contemporâneas. Podíamos ter feito, e seria legítimo, “olha, vamo-nos colocar como se estivéssemos na Antiguidade e fazer um disco como se vivêssemos nessa época”. Não, nunca nos passou isso pela cabeça. O disco nunca tem essa postura, tem sempre a atitude de uma banda do século XXI que revisita o berço da nossa civilização, sem tentar recriar como seria a música naquela época.

Todos os discos de Pop Dell’Arte são diferentes e a novidade que mais salta à vista em Transgressio Global é a sua estética exótica e mística, quase um psicadelismo negro. De onde veio este interesse?

Nós fazemos a música de uma forma muito espontânea e natural, não é uma coisa muito racional. As coisas vão sendo feitas, nunca temos ideia do que é que vai sair dali, ou, por vezes, até temos uma ideia mas o resultado final nunca é aquele que a gente tinha pensado, deixamo-nos um pouco levar pelos acontecimentos. Aliás, não funcionaria de outro modo. “Agora, vamos fazer um disco que vamos querer que soe mais psicadélico ou mais punk ou mais retro ou mais não sei o quê”. Não, os temas vão sendo feitos e vão-se impondo por si, cada tema corresponde a uma ideia, a um texto, a uma história, ou até nasce de uma linha de baixo, de uma linha de guitarra, do que seja, mas vai sendo como um ser que nasce e que vai ganhando a sua personalidade, seguindo um caminho que nos surpreende.

Em “Psycho-Urban-Jungle-Rock” parece existir uma sátira ao revivalismo da pop actual, sempre obcecada em revisitar o passado. Faz sentido esta interpretação? Achas que esse excesso de nostalgia diminui a criatividade da cultura pop?

A intenção era um bocado mais positiva: homenagear alguns ícones da pop. Mas não acho que seja absurda essa interpretação e ela não só é legítima como se calhar também está implícita. Concordo que a pop se tem reciclado de uma forma que, por vezes, não é muito criativa e as coisas parece que se repetem, parece que entrámos numa espécie de eterno retorno, em que não surge nada de novo e o que volta é sempre algo que já existia antes. A pop não se tem sabido reinventar. Esse é um dos motivos por que quisemos usar a palavra “transgressão” como bandeira neste disco. A cultura jovem pop/rock começou por ser extremamente transgressiva, em relação ao poder e em relação à estética, criaram uma sonoridade nova e renovaram-na: de repente era o psicadelismo, depois era o punk, depois era o pós-punk, depois era o rap, e havia sempre coisas novas a acontecer. Mesmo dentro da mesma geração, havia uma capacidade de se estarem sempre a reinventar. Nos últimos 20, 30 anos, parece que, de repente, a fonte secou. Há coisas boas mas soam sempre a uma repetição.

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