Em 1987, Appetite For Destruction fora um retumbante sucesso. Agora, volvido um ano, era preciso pôr depressa um disco cá para fora, sob pena do burburinho esmorecer. Os Guns tinham acabado de gravar quatro temas acústicos, pelo que alguém da Geffen teve uma ideia engenhosa: e se a esse lote de canções se acrescentasse o EP Live ?!*@ Like a Suicide (gravado em 1986 e que há muito esgotara), vendendo-se este mutante híbrido como algo inteiriço? Se o exercício era, sem dúvida, batoteiro, a tramóia funcionou: Lies entra directo para os lugares cimeiros e a banda consegue a proeza de ter dois LPs em simultâneo no top 5. O caminho para o estrelato planetário era agora impossível de travar.
Nos Guns canónicos, que vão do Appetite até aos Use Your Illusion, Lies sempre foi o patinho feio da família, desdenhado enquanto intervalo publicitário entre os dois programas realmente a valer. Argumentaremos que a apreciação é injusta, falhando em reconhecer o que há de único e irrepetível neste disco.
No lado A, encontramos a fibra punk dos primórdios, quando o Axl só conhecia um único registo de voz esganiçada e o som das guitarras tinha aquele delicioso travo sujo a gasóleo barato. Eram menos virtuosos (apesar do Slash já ser… o Slash) mas tinham uma espontaneidade e um sentido de urgência que nunca mais igualariam.
Durante as primeiras quatro canções, ouvimos a chinfrineira ensurdecedora de um público em êxtase. Caro fã desprevenido: lamentamos desiludi-lo mas nenhum tema é ao vivo; são tudo overdubs acrescentados artificialmente. É verdade que o truque baixo era desnecessário: a rudeza apunkalhada das suas canções poderia perfeitamente ser assumida até ao fim; mas convenhamos que, num álbum que se chama Lies, todas as suas mentiras ganham um travo mais saboroso.
Dois temas são covers. Se, tecnicamente, isso não pode ser considerado uma trapaça, num álbum já de si tão pequeno e bastardo soa a nova batota. Mas tudo lhes é perdoado com escolhas tão certeiras. “Nice Boys” é dos Rose Tattoo, obscura banda australiana que cruza o punk com o blues. Slash é fiel ao espírito original da canção, tentando abater o maior número de marsupiais com a sua slide guitar crua e estridente. O verso “miúdos decentes não tocam rock’n’roll”, não sendo da autoria dos Guns, não poderia ser um melhor statement para a ética da transgressão que sempre os definiu.
A segunda versão é ainda mais importante: “Mama Kin”, grande canção do álbum de estreia dos Aerosmith. Com esta homenagem, os Guns deixam bem explícita a sua reverência aos seus ídolos de adolescência. Na sua autobiografia, Slash conta uma história engraçada a este respeito. Era ele teenager e, qual não é o seu espanto, quando uma miúda mais velha, que ele julgara estar muito acima do seu campeonato, o convida para sua casa. Slash lá vai, esfregando as mãos de contente com as fantásticas perspectivas que se abririam para ele; mas eis que quando lá chega descobre um vinil dos Aerosmith, ficando tão absorvido a ouvir o Rocks que se esquece por completo da rapariga.
É preciso lembrarmo-nos que muitas das grandes referências dos Guns provêm de fora da América (dos AC/DC aos Stones, passando pelos Hanoi Rocks) e que o hard rock americano sempre produziu os mais informes monstros. Os Aerosmith eram uma das poucas bandas americanas com os quais os Guns se conseguiam identificar, e sempre fizeram questão de o deixar bem claro. “Mama Kin” tem esse lado simbólico: a passagem da coroa da melhor banda americana de hard rock dos anos setenta para os monarcas da década seguinte.
As originais “Reckless” e “Move to the city” marinam nas mesmas nódoas de gasolina, mas sendo as letras agora escritas por Axl, as confissões autobiográficas vêm ao de cima: o inferno do lugarejo no interior onde cresceu, o inferno na grande cidade para onde fugiu.
Viramos o disco e não poderia ser maior o contraste, como se houvesse um corte de electricidade e os Guns tivessem que se amanhar só com instrumentos acústicos (mais uma mentira, que o Izzy Stradlin não conseguiu resistir a uma guitarrinha eléctrica em “One in a Million”). Todo o lado B tem esse travo folkie e bluesy, muito inspirado nos Stones- os Guns a mostrarem ao mundo que conseguem vencer em vários tabuleiros.
“Patience” foi o single que catapultou o álbum, balada romântica para fazer chorar mesmo as mais empedernidas meninas. Sem qualquer percussão, Steven Adler fica a olhar para o tecto durante a gravação, a bezerrar do último chuto de heroína. O jogo das três guitarras acústicas (Duff McKaggan também dá uma perninha) é cristalino e o solo de Slash- de uma simplicidade encantadora. O registo da voz de Axl é agora doce e sereno, uma prova da sua enorme versatilidade vocal. Pode alguém ser ao mesmo tempo um grande vocalista, um grande frontman e um grande troglodita? Pode.
“Used to Love Her” é mais mexida, de paladar country, fazendo vagamente lembrar a “Dead Flowers” dos Stones mas com uma melodia bem mais cativante. A letra divertida sobre o assassinato da namorada causou alguma polémica nos círculos feministas. Falta de sentido humor, achamos nós, apesar da sua misoginia ser de facto um dos traços desagradáveis da banda de Los Angeles.
Para não variar, há também alguma batota em “You’re Crazy”, já que é apenas um remake de um tema já editado em Appetite For Destruction. Curiosamente, foi assim – acústica, mais lenta e mais bluesy – que a canção apareceu pela primeira vez. Toda a canção vive daquele riff gigante, que por uma qualquer razão estranha o Jimmy Page se esqueceu de inventar.
E, no fim, a pérola em cima do bolo: a controversa “One in a Million”. E foi aqui que Axl se estraçalhou todo. Esta grande canção-manifesto, com os seus desabafos sem filtro de um puto rebelde de uma cidade pequena contra o mundo inteiro, poderia ter sido o hino de uma geração, uma espécie de “Smell’s Like Teen Spirit” três anos antes do tempo. Mas com as suas patacoadas racistas, xenófobas e homofóbicas, Axl estraga tudo.
Essa foi sempre a história da vida dos Guns: sublimes e soezes ao mesmo tempo. Não seremos também todos nós um pouco assim?