Num mundo prestes a colapsar, GOAT presenteou-nos com uma noite repleta de positivismo, êxtase, onirismo e energia.
Estava a ir para o metro quando cânticos na rua me chamaram a atenção. Um coro uníssono de várias vozes que se serpenteavam em espirais ascendentes até um cume apenas para descer suavemente em infindáveis repetições da melodia.
Ouvir vozes pode ser interpretado como mau sinal mas não. Não estava a delirar e não era na minha cabeça. Era só mesmo um grupo religioso a curtir a deles. Em círculo. Mãos no ar em exultação. Olhos fechados a viajar num plano superior. Completamente hipnotizados e em avançado estado de psicadelização. Mesmo no meio da Praça do Rossio. E sorrisos. Muitos sorrisos.
Sorrisos radiantes, alegres, cheios e felizes. Muito felizes. Felizes por estarem vivos. Sorrisos esses que iria ver de novo nessa mesma noite apenas umas escassas horas depois. Reconheci-os estampados na cara de praticamente toda a gente que se dirigiu ao LAV para aquilo que foi um magnífico e estrondoso concerto de GOAT, conjunto mistério sueco que dispensa introduções e cujos concertos são comummente descritos como ritualísticos, xamânicos ou, atrever-me-ei eu a dizê-lo?, até mesmo espirituais.
‘Apropriado’, pensei, ‘Bela primeira parte não oficial para hoje à noite…’

Apropriado também porque a melodia que entoavam não era em nada dessemelhante à Being Is More Than Life de Baby Grandmothers, uma das primeiras bandas de Svensk Psych dos anos 60 e 70 do Século XX. Numa noite em que tocavam uns dos herdeiros lógicos dessa estirpe de contracultura, tudo pareceu apenas encaixar-se naturalmente. Um bom auspício para uma noite que se provaria mágica, portanto.
Após terem passado por Portugal em festivais, a perspectiva de ver GOAT em ambiente mais próximo e intimista de clube criava uma certa expectativa. Havia uma energia e uma calma latente nas pessoas que se deslocaram àquele que seria o segundo concerto em nome próprio em Portugal. A noite anterior no Porto, além da estreia absoluta em Portugal nestes moldes, assinalou também a descolagem do potente e viciante novo álbum Medicine, lançado pela mão da sempre em cima do acontecimento Rocket Recordings numa sempre charmosa Sexta Feira 13 coincidindo com os anunciados concertos ‘até sabe-se lá quando’ do colectivo sueco.
Pontualmente, perante uma casa repleta de ávidos convertidos, surge nas colunas um drone carregado e desenhado para preparar o estado de espírito da audiência num jogo de cordas intenso que se espalha pela sala a apelar introspecção e a criar uma suave antecipação que nos coloca a mente no mais profundo céu. O mote ideal com que entram em palco. A partir daqui…
Como descrever o inenarrável ou narrar o indescritível? Digo desde já e de chapa, das quatro vezes que vi GOAT, esta foi de longe a melhor de todas.
Com uma selecção de músicas irrepreensível, durante cerca de uma hora e um quarto, GOAT convidou-nos e deu-nos uma lição daquilo que um bom concerto deve ser.

Sem medo, vergonha ou pudor em pisar os calos ao fuzz e abusar do wah wah, sem medo de puxar pelo baixo até este ribombar trovão do amplificador colado ao propulsor trabalho dos dois timoneiros a impor ritmo em bateria e percussão nesta galé. Sem medo de puxar pelo volume com o objectivo de atingir a psique tornando assim físico o provocado levitar do estado de espírito e predisposição para nos deixarmos levar alegremente neste passeio não sabendo onde vamos parar. Acima de tudo, sem medo de deixar um nunca incomodativo agradável zumbido nos ouvidos como há muito tempo não sentia após um concerto (não, nunca vi os Swans, só mesmo os Blue Cheer).
A tudo isto se junta a entrega de total abandono até ao desgaste adrenalizante das vocalistas feitas Stacias armadas com o dom da palavra cantada através imparáveis e improváveis danças às quais não é possível quedarmo-nos indiferentes, fazendo a cama perfeita para a sobejamente famosa indumentária que anonima os intervenientes em palco e assume um papel fundamental auferindo uma aura de efeito vagamente intimidante e respeitoso (se me aparecer alguém de máscara à minha frente vinda do nada, eu é que de certeza absoluta não vou lá tirá-la, sabe-se lá que tipo de pessoa se encontra por trás de uma cara deliberadamente tapada – seria o equivalente a dar uma chapada num desconhecido).
Autêntico, interessante, menos regimentado e mais genuíno que, por exemplo, os seus compatriotas Ghost, os figurinos são um grande trunfo neste jogo de cartas em equipa. Paradoxalmente libertadores, simples e eficazes, esses figurinos põem fora de cena a Persona, cedendo espaço ao surgimento de novas identidades individuais de cada membro do grupo agindo em conjunto como uma entidade una com um objectivo único e partilhado. Providenciar bons momentos a todos os intervenientes. Tanto à audiência como também a eles próprios.
Porém, o que me leva a gostar de GOAT é mesmo a Música.
Tal como com a Alice Cooper Band original, teatralidade não é tudo e, por vezes, não é suficiente. Por baixo desta roupagem, tem de haver a Música. Sem ela, haveria só espectáculo de plástica qualidade desprovido de alma. Aqui, Música é o músculo que suporta este corpo que se anima de modo primal em espasmos e movimentos involuntários de dança e explosividade.

Aqui, Música é Chicha Black Sabbath (em alternativa temos o seitan assado no forno com batata doce e castanha caso sejam ou vegan ou vegetarianos ou apenas não comam carne – straight edge não entra nesta equação porque esta música é movida a psicadélicos mas são bem-vindos de braços abertos à mesma, o ambiente é exclusivamente inclusivo) apresentada via vários géneros de múltiplas e diversas linguagens musicais espalhadas por este globo fora. Os figurinos, esses são exóticas Especiarias Dr. John perdidas numa cerimónia vodun num bayou qualquer nos arrabaldes de Nova Orleães.
Com as suas ritmadas descargas iniciais, o moderado mas potente arranque com a “Soon You Die” demonstrou desde logo a nota de intenções destes suecos com uma mensagem pragmática. Em breve morremos. Portanto, mais vale aproveitar o tempo disponível nesta vida. Apreciar as pequenas coisas simples, os grandes pormenores, discernir o que é realmente importante e passar todos os momentos possíveis com quem nos é querido e próximo. Basicamente, viver a vida, aproveitar o tempo que nos resta e fazer a festa. E a festa fizeram, seguindo com a barragem de energia, groove e swag que é a “Goatfuzz”, um dos melhores temas da banda que nos compele a mexer o corpo, possuído pelo beat e por guitarras arrancadas das entranhas da terra terminando esta trilogia de entrada com a igualmente contagiosa “Under No Nation”.
Uma irrequieta vontade de dançar impossível de conter apodera-se de nós e contagia-nos de tal forma dando a sensação que estamos a assistir a uma possível mas inexistente versão alternativa de baixo orçamento do Sétimo Selo saturada em tecnicolor e contraste exagerado como se fosse antes um filme de contracultura existencialista do final dos anos 60 regado em ácido.
Deixando-nos levar por vales profundos, frondosas florestas ou áridas paisagens tanto de implacável areia escaldante do deserto como de gélidas planícies de pura neve árctica, as influências sonoras de dispersas origens espaciotemporais moldam-se sem esforço e passam-nos despercebidas melodias de uma rica herança musical do seu próprio país de origem. Bebendo tanto o vinho do folclore tradicional escandinavo como a poção da cena underground sueca, o que lhes é familiar e lhes corre nas veias pode ser, quase ironicamente, interpretado e descodificado (ou encaixotado) aos nossos ouvidos como world music.
Após este fulgurante começo de concerto e reunidas estas anciãs tribos, o concerto continuou em eternas ascensões, fruto de uma inteligente gestão de dinâmica, ora enchendo a boca de intensidade, ora mantendo a corrente ligada enquanto entram em modo desbunda Concerto Para Percussão e Flauta numa transição que nos leva a uma curiosa e despida versão da “It’s Time For Fun”. Espero que se estivessem realmente a divertir, porque nós, público, garantidamente estávamos.
Inteiramente rendidos a esta boa suecada, a segunda metade do concerto apresentou as mesmas características de interacção da banda connosco. Sem proferir palavra, a comunicação fez-se em instantes instrumentais com linguagem corporal e incitações no precipício do palco a galvanizar ainda mais os presentes até ao fim do esquecimento.
Puxando pela audiência e igualmente puxada por ela em sinergia com a música, uma avassaladora sequência final atrelada à santíssima trindade do twin lead da Escola Lizzy/Wishbone Ash/Maiden caso estes fossem do Mali evocada no final da “Blow The Horns” ditou o completo colapso de quaisquer defesas pessoais que restassem aos membros do público.

A temperatura subiu até atingir valores que rebentam termómetros com “Disco Fever” em roupagens de heavy funk elevado à 10ª potência em feedback para descambar num poderoso revisitar do titânico “Goatman”, single que começou esta saga há mais de uma década na mais pesada rendição que alguma vez assisti a banda apresentar.
Restava apenas rebentar com a casa e mandá-la abaixo e foi isso mesmo que aconteceu com a magnânime “Let It Burn”, faixa originalmente editada apenas em single e repescada tanto para a compilação de raridades Headsoup como para a banda sonora da série Gallows Pole.
Com o seu chamamento rítmico à Kristallen Den Fina de Harvester versão troglodita, o arrastar da lama e lodo a escorrer dos braços das guitarras arrastado à pazada pelo baixo e aquela frase cantada de modo mais Ozzy que o Ozzy depois do solo, este tema incendeia a alma. Quem não se deixa levar por este denso embalo, só pode ter sérios problemas de saúde pois é bem provável que essas pessoas não possuam coração que lhes bombeie oxigénio ao cérebro.
Apoteótico, o grupo sai momentaneamente de cena apenas para voltar como esperado para responder ao clamor da fiel multidão num curto e conciso encore com a vagamente insípida mas divertida “Do The Dance”, a injectada de energia “Union Of Mind and Soul” e, finalmente, uma sempre estelar versão ao vivo do clássico “Run To Your Mama” com toda a glória daquela nota insistente que se estica até não poder mais num dos melhores riffs que a banda ofereceu ao mundo.
Curiosamente, ficaram de fora temas do novo álbum. O que é pena pois fico curioso em ver como seria a reacção a uma ‘Join The Resistance’ ou uma ‘Impermanence & Death’ num público pouco consciente ainda do novo álbum. Ao menos um filete… Mas não se pode ser mimado e ter tudo que se quer.
Curioso também foi ter olhado em meu redor durante o concerto e reparar sem grande espanto num cenário que tinha assistido nessa mesma noite apenas umas escassas horas antes.
Mãos no ar em exultação. Olhos fechados a viajar num plano superior. Completamente hipnotizados e em avançado estado de psicadelização. E sorrisos. Muitos sorrisos.
Sorrisos radiantes, alegres, cheios e felizes. Muito felizes. Felizes por estarem vivos.
Numa altura de tão crítica, profunda e catastrófica divisão, agrura e agressão, este concerto foi um suavizante bálsamo e uma salutar festa para todos os presentes.
Uma festa para os tempos.
*Artigo que vale o que vale e escrito em total desacordo ortográfico, muito provavelmente gramático também sem qualquer tipo de consideração pelas regras de escrita jornalística (leia-se, é provável que já não saiba escrever).
Fotografias: Rui Gato