Em 1791, Wolfgang Amadeus Mozart compunha o seu Requiem em ré menor. A altura não poderia ser mais irónica – a encomenda de uma missa fúnebre chegava-lhe nos seus últimos meses de vida, fazendo do Requiem K. 626 a sua própria missa fúnebre, a sua lápide, num certo sentido a sua autobiografia. A morte cairia em cima de Mozart a dois terços da obra, vindo esta a ser completada meses mais tarde por Franz Xaver Süssmayr e a tornar-se numa das mais célebres composições da popularmente chamada música clássica.
225 anos depois, também os Goat nos trazem o seu Requiem. Uma obra que nos fala menos sobre o juízo final católico, aproximando-se de filosofias orientais e africanas e seguindo um caminho mais direccionado ao significado literal, em latim, da palavra – descanso. Com Mozart, partilhará também o seu cariz autobiográfico e misterioso.
Requiem abre com uma referência a “Djorolen”, de Oumou Sangaré. A letra, em bambara, fala de um pássaro que canta na floresta, preocupado com as crianças que não têm pai, oferecendo-lhes os seus pensamentos e preces. Tal como o primeiro disco da banda sueca, também este abre com a adaptação de uma canção do Mali – sendo a outra “Diarabi”, de Boubacar Traoré. Alegadamente oriundos da remota vila de Korpilombolo, na Suécia, os Goat sempre justificaram a sua postura cénica, sónica, mística e comunal numa suposta tradição antiga de Voodoo que existiria nesse lugar. Mesmo sendo tudo isso verdade, o universo dos Goat sempre foi muito além das fronteiras de Korpilombolo, da Suécia e mesmo da Europa.
No passado, no irónico e crítico título do disco World Music, em “Diarabi” e em muitas referências rítmicas às cordas do Saara e ao afrobeat – e até mesmo à música indiana, turca e de tantos outros lugares. Em Requiem, em referências ao budismo tibetano, novamente a África – seja norte ou sul – em ritmos, instrumentos, samples ou até filosofias, ao Olho da Providência e a muitos rituais emprestados de outros lados.
A par desta mescla de referências, recorrente nos discos do conjunto sueco, há também em Requiem um repousar – o tal descanso – das guitarras eléctricas distorcidas e dos pedais de wah-wah mergulhados em psicadélicos. Desligam-se os amplificadores e deixam-se soar alegres flautas, rítmicos reco-recos, mansas guitarras, tântricos tambores, alaúdes, koras, lamelofones e muitos outros instrumentos escondidos na manta sonora palpável que é Requiem.
A magia de Requiem reside na capacidade dos Goat em se reinventarem, abandonando completamente o som do passado para criar algo novo e oposto, ainda que mantendo a cem por cento a sua identidade, o seu ADN e as suas referências – por outras palavras, mantendo tudo aquilo que gostamos neles.
O terceiro álbum desta banda é também aquele onde a voz se torna mais relevante (e sonante). “I Sing In Silence”, que curiosamente retoma na flauta as notas do pássaro de “Djorolen”, carrega consigo um manifesto espírito hippie, de irmandade e entreajuda, mais inspirado pela experiência humana directa que a experiência narcótica dos trabalhos que precederam este disco. “Try My Robe” perpetua esse espírito, aqui incentivando à partilha. Em “Psychedelic Lover” ouve-se ao longe um chamamento muçulmano à oração, numa arabesca cantiga de amor.
O disco culmina com o duo “Goodbye” e “Ubuntu”. A primeira coloca a kora no lugar da frente, numa despedida feita homenagem de oito minutos a um dos mais belos instrumentos do continente-mãe e que certamente muito fez pela banda. A última põe em primeiro lugar as pessoas – mais concretamente, os testemunhos daqueles que ajudaram directamente o imaginário e o ideário dos Goat a ser construído e esculpido em pedra no seu terceiro disco. A palavra Zulu “ubuntu”, explicam-nos, significa literalmente humanidade – num sentido de se ser humano e bondoso perante os outros.
O tema final de Requiem é uma das peças mais enigmáticas dos Goat até à data. Ao ouvirmos vozes que nos explicam aquela que é no fundo a ideia por detrás de toda a visão de comunhão do colectivo, voltamos também a ouvir “Djorolen”, que desagua na primeira música que os Goat nos deram num disco – “Diarabi”. E a questão é deixada em aberto: será o fim o início? Será este Requiem uma semente de futuro ou o fechar de um ciclo? A resposta poderá estar mesmo no começo (do disco) – a União do Sol e da Lua é um texto budista que descreve o estado entre a morte e o renascimento. Resta-nos saber se o renascimento dos Goat já aconteceu com este álbum duplo ou se estará ainda para acontecer.