Tenho vindo a escrever, aqui no Altamont, sobre os discos que considero fundamentais na história da música popular brasileira. Faço-o sem preocupações de maior, e com a modéstia de quem sabe que a subjetividade deste tipo de propósito é larga, e por isso julgo que os meus textos devem ser lidos tendo sempre isso em conta. Sou, no entanto, um ouvinte atento ao universo musical brasileiro há mais de 30 anos, o que me permite ter capacidade de fazer a filtragem necessária para que a minha opinião possa surgir assim, despudorada e por escrito, num site que é lido por gente igualmente atenta e de ouvidos bem abertos. De forma assertiva, sempre, e absolutamente consciente de modas que ditam nomes e os tornam enormes, sendo que nesse avolumar de tempos, discos e artistas bons e menos bons, alguns ficaram esquecidos, apagados na memoria coletiva que não os apreciou ao nível das suas verdadeiras dimensões. É o caso do artista e do disco presentes: Alucinação, do nordestino Belchior.
Artista polémico, quase maldito, Belchior surgiu como poeta repentista em feiras do Ceará, tendo sido posteriormente notado por nomes maiores da MPB, como foi o caso, por exemplo, de Elis Regina, que dele chegou a gravar, entre outros, o tema “Mucuripe”, dando-lhe, assim, algum destaque. Mas foi, sobretudo, com o seu segundo longa duração que Belchior deixou para sempre a sua marca na história musicada do país irmão. Alucinação é uma afirmação profunda e filosófica (Belchior foi estudante dessa linguagem fundamental da existência humana) sobre a sua vida e o seu tempo. É, nessa medida, tremendamente autobiográfico, e as letras / poemas das composições presentes nesse disco de 1976 são o melhor exemplo de uma época difícil para os brasileiros. A liberdade, quando falta, torna-se musa inspiradora, sendo que, mesmo assim, só alguns conseguem torná-la vibrante e magnânima. Alucinação é um canto à liberdade num momento em que o regime a cerceava, um grito sofrido e revelador das dificuldades acrescidas de quem vive no sertão, longe dos centros onde tudo acontece, e onde a vida é (ou parece ser) mais fácil e maravilhosa. É isso que nos diz Belchior, logo na primeira faixa do álbum. Apresenta-se como “Apenas Um Rapaz Latino-Americano”, e os primeiros versos cantados são desarmantemente belos: “Eu sou apenas um rapaz Latino-Americano / Sem dinheiro no banco, sem parentes importantes / E vindo do interior / Mas trago na cabeça uma canção do rádio / Em que o antigo compositor baiano me dizia: / – Tudo é divino. Tudo é maravilhoso!” A referência à composição “Divino, Maravilhoso” (de Caetano e Gil) tornada célebre pela voz de Gal Costa, é tão explícita quanto reveladora da fragilidade das certezas que, aparentemente, anuncia. Surge nos primeiros versos da primeira canção do disco, como referi, e volta a estar presente, por exemplo, na canção que o fecha, embora de forma mais velada, quando se afirma “Viver é que é o grande perigo”, último verso de “Antes do Fim”. Se se der ao trabalho de ouvir a canção dos baianos tropicalistas, caro leitor, imediatamente perceberá a razão do que digo.
O disco segue com “Velha Roupa Colorida” (mais uma letra e canção de excelência), destacando-se as profundas expectativas de mudanças sociais que o Brasil viveu nos anos 50 e 60, mas que na realidade não vieram a cumprir-se, fruto de golpes de estado de âmbito militar, que fez com que praticamente todo o continente sul americano viesse a padecer das politicas opressoras nele impostas. Por isso, e na continuidade lógica do discurso (Alucinação, como já deve ter percebido, é um disco político e de combate) surge “Como Nossos Pais” no alinhamento das faixas do álbum. E volta a referência a “Divino, Maravilhoso”, quando se canta “Por isso cuidado, meu bem, há perigo na esquina!”, bem como outra referência a uma outra conhecida canção, “Sinal Fechado”, de Paulinho da Viola, surgida em 1970. “Eles venceram e o sinal está fechado pra nós / que somos jovens”, canta Belchior. No entanto, na cabeça do artista há uma resolução há muito tomada, e da qual nada o demoverá: “Sempre desobedecer / Nunca reverenciar”, cantada em “Como O Diabo Gosta”. Na lucidez de quem sofre e não desiste, mesmo que o futuro projetado seja negro e pouco apetecível, o canto de Belchior revela-se profético e humanista. Em “Alucinação”, canção título poderosíssima, os versos finais voltam a ser assertivos e frontais: “Mas eu não estou interessado em nenhuma teoria / Em nenhuma fantasia, nem no algo mais / Longe o profeta do terror que a laranja mecânica anuncia / Amar e mudar as coisas me interessa mais”. Os jovens, agora oprimidos (refiro-me a 1976), não desarmarão, nem se afastarão do país que amam. Fica essa certeza. Aliás, a canção “Não Leve Flores” anuncia que é ainda cedo para os malfeitores poderem cantar vitória, e que esses mesmos jovens saberão sempre estar no lado certo da trincheira. “A Palo Seco”, oitava canção de Alucinação, é o melhor exemplo do melhor Belchior! Amada por futuras gerações de músicos, como é o caso de Los Hermanos, por exemplo, mas também cantada por Oswaldo Montenegro, “A Palo Seco”, repito, é uma extraordinária canção, belíssima, poderosa, cortante, e sucesso maior da carreira de Belchior, sempre tão pouco reconhecida. Já em “Fotografia Em 3×4”, na qual refere o nome de Fernando Pessoa, nova piscadela de olho a Caetano Veloso, desta vez modificando o verso da sua canção manifesto “Alegria, Alegria”, adaptando-o à dura realidade de quem sofreu o impacto de viver nas grandes cidades: “Veloso, o sol (não) é tão bonito pra quem vem / Do Norte e vai viver na rua”, identificando-se, no entanto e mesmo assim, com a história do baiano e com a de todos os jovens que tentaram a vida nos grandes aglomerados citadinos. “Antes Do Fim” termina o disco com uma mensagem bonita e comovente, salientando, à laia de pedido, “Que fiquem sempre jovens / E tenham as mãos limpas / E aprendam o delírio com coisas reais”.
Para além da óbvia qualidade poética e musical de Alucinação (o disco é mesmo muito bom, e viciante), o cunho politico do álbum salienta a sua intemporalidade, e os tempos que correm tornam atual a sua mensagem. Eu, que não me revejo na esquerda tantas vezes folclórica e desgarrada, mas que sou intrinsecamente liberal (palavra que quase virou maldita, mas cujo significado valorizo à maneira do século XVII francês), tenho por Alucinação um amor profundo e eterno. Também o tenho por Belchior, que vale mesmo a pena conhecer. Ouçam-no, ouçam os seus discos, e resgatem-no do limbo do esquecimento a que está votado há demasiado tempo. E, já agora, por esta ordem: Alucinação, Medo De Avião, Todos Os Sentidos e Baihuno.
Obrigado, caro Ademaramncio. Agradeço este comentário, assim como todos os outros. É bom ser lido no Brasil. Abraço transatlântico! Continue seguindo o Altamont.
Parece que meu nome está saindo errado:’Ademar Amâncio’,Populina, S.P,Brasil.
Muito bom o texto-crítico sobre Belchior – As canções ”Como Nossos Pais” e ”Velha Roupa Colorida” a Elis Regina tomou para si.
Outro álbum da MPB que vocês deveriam analisar: Bebeto Alves y La Milonga Nova (2000)
Magnificente, caríssimo Carlos! Há de falares mais da discografia belchioriana, se alguém do site ler o comentário, por favor, comecem a analisar mais a obra deste génio!
Muito bem pesquisado e sem alucinação! Parabéns
Muito obrigado, Gustavo Mahler. Ainda bem que gostou do texto. Abraço, e volte sempre ao Altamont.
Parabéns!
Resenha mais que perfeita sobre a jornada de Belchior.
Passando por aqui e agora e admirado com seu trabalho. Vc fala do que você sabe – e entende muito bem. Ganhou um seguido ( Brasil )
Paz, brother !