Jordan: The Comeback, mais que um álbum podia ser três ou quatro, ou melhor ainda, é um espetáculo musical sem palco.
Uma das grandes vantagens, e dificuldades, de escrever para o Altamont é poder escrever sobre alguns dos nossos discos favoritos, daqueles que nos acompanham em várias alturas da vida e soam sempre reconfortantes. Dificuldade porque fazer esta homenagem com sentido crítico a objetos de estimação, a peças sonoras que nos acompanham pela vida, a obras primas musicais, com textos que possam estar a esse nível, é uma grande responsabilidade. Por isso vou escrever simplesmente uma carta de amor a Jordan: The Comeback.
Disco de 1990, com umas estonteantes 19 faixas, liderado na voz e composição por Paddy McAloon e produzido por Thomas Dolby, que tinha trabalhado com a banda anteriormente em Steve McQueen. A produção de Dolby, também ele músico, dá um extra aos Prefab Sprout e cria uma atmosfera brilhante, em que as 19 canções soam diferentes mas com um fio condutor. Através das letras de McAloon, os coros etéreos de Wendy Smith e os ambientes sonoros, cada canção soa única mas diferente. Porque Paddy McAloon é um letrista brilhante e um grande criador de belas canções pop sofisticadas e inteligentes, com profundidade e complexidade líricas e com uma coisa que eu adoro, que é saber contar histórias nos poucos minutos que tem uma canção.
Vale a pena meter em contexto onde surge este disco na carreira dos Prefab Sprout. Depois do grande sucesso de Steve McQueen em 84, a tentativa de capitalizar com From Langley Park to Memphis (de onde saiu o seu single mais conhecido) e o mais ignorado Protest Songs, em 1990 Jordan; the Comeback apareceu com os rumores que era um álbum conceptual. E é, mas não no sentido mais tradicional do termo. Jordan: The Comeback assume-se sem problemas como um álbum pop e os temas são distintos em cada canção, com pouco em comum para fio condutor. Ou será que não? Vamos olhar para ele canção a canção.
Profundizando, o disco começa com “Looking For Atlantis”, sobre a busca por uma Atlântida emocional, um excelente single e tema de abertura, com todas as marcas que fazem dos Prefab Sprout o que são. Segue-se “Wild Horses”, uma balada com pratos em reverse, metáforas hípicas e uma parte de spoken word sexy com risos, sobre querer ser mais novo outra vez e ambicionar alguém indomável, e “Machine Gun Ibiza”, com um toque de anos 70, sobre uma pessoa que parece que todos querem estar perto. Não se chega a entender se o autor tem legítimo interesse no personagem ou é uma crítica à bazófia, mas de acordo com uma entrevista de 1990 com o autor, não tem uma grande mensagem.
Ainda sem que seja óbvio o fio condutor, surge “We Let The Stars Go”. Referindo-se ao nome real de Paddy, Patrick Joseph ou neste caso, Paddy Joe, a música é bastante direta na mensagem, sobre um antigo amor que é visto com alguma ternura apesar de ambos terem andado com a vida para a frente. Uma excelente canção, outra vez com um ponderado uso dos coros para representar o antigo amor.
E o tema da nostalgia continua na seguinte canção, “Carnival 2000”. Com uns toques de samba, a faixa soa nostálgica, no meio de apitos e tambores, como insistência nas boas memórias e poder fazer tudo o que se quer na vida. “Loves come and go but love above all“. E por fim a faixa título, Jordan: The Comeback, depois de tanta antevisão de temas.
Na verdade demorei muito a entender sobre o que era esta canção. Algo normal quando se escuta um disco desde os seis anos e se chega a um ponto de nem pensar no seu significado. Um personagem que será revelado mais à frente faz a sua travessia do deserto, e o metafórico rio Jordão estará no fim à sua espera. Não é que a mensagem seja indecifrável, mas o contexto aqui diz tudo e essa foi a parte que levou um dia a uma descoberta sobre o significado de todo o álbum. A canção é escrita em primeira pessoa e em tom confessional. “Laying on my back, biding my time / I’m just waiting for the right song / Then I’m coming back“é sobre Elvis, afinal vivo, à espera da canção perfeita para voltar.
E essa canção é “Jesse James Symphony”. McAloon como muitos outros músicos britânicos, tem um fascínio pelo Americana, pelo deserto e heróis de folclore como o bandido do século XIX (Basta lembrar The Gunman And Other Stories de 2001). Com mínimo acompanhamento sonoro que dá ainda mais espaço ao brilhantismo desta letra em todas as frases são dignas de destaque, misturando história com interpretação. E sem espaço para respirar, surge “Jesse James Bolero”. A canção mais marcha que bolero, com banjo e tudo, é sobre a interpretação da importância do personagem e da sua fama, após a morte. “Don’t goodbye deserve some Bach not Barbershop“, pergunta McAloon enquanto fala dos planos do fora-da-lei que ficaram por cumprir.
Com “Moon Dog” voltamos ao personagem que encontrámos na canção “Jordan: The Comeback”. A cena inicial é a de um funeral de alguém importante que afinal está na Lua, depois de ter conquistado a Terra. Sem ficar claro se esta morte é real, são dadas mais pistas sobre o Rei, longe do Coronel. Se não fica claro sobre quem canta McAloon, o final da canção tem um excerto sonoro do próprio Elvis Presley a falar. E claro, isto é sobre Elvis, no sentido literal mas também no da importância cultural, da fama, do papel que teve numa geração e do que fica para o futuro. Mas ao mesmo tempo é sobre o legado de cada um de nós. Já lá iremos, porque Paddy fez um interlúdio temático (será?).
Em “All The World Loves Lovers” canta-se sobre o nosso amor, que único e diferente ele é de todos os outros. E logo a seguir, a curta “All Boys Believe Anything”, que eu sempre interpretei como a continuação da anterior, exemplo da inocência juvenil. Aqui entra uma sequência de canções que se encaixam umas nas outras tematicamente e na produção. Sendo todas com andamentos e estilos algo diferentes, encaixam como o lado B do Abbey Road. “Ice Maiden”, excelente com os sintetizadores sincopados, é descrita pelo autor como uma canção de uma banda como os ABBA, escrita como se o inglês não fosse o idioma nativo mas ao mesmo tempo soasse bem, ainda que um bocado estranha. Seguida vem Paris Smith, canção com sentido de humor sobre querer dar um nome “a armar” a uma filha (“I tried to be the Fred Astaire of words“) mas que ao mesmo tempo também é outra vez sobre nostalgia, boas memórias e com uma passagem que contradiz a música que a sucede, “The Wedding March”. Se uma diz que todas as canções decentes são para dançar, a outra diz que há músicas que não se dançam. Uma espécie de valsa com direito a coros a fazer de instrumentos de sopro, sobre não entender o ritual do casamento. E depois desta voltamos a mudar de tema, ou não, porque este afinal é o truque que nos faz Jordan: The Comeback. Tudo está tematicamente interligado.
Escrita do ponto de vista de Deus, porque Paddy McAloon vai sem medos, “One Of The Broken” é uma canção etérea sobre a fé e sobre introspeção. Este é um tema recorrente nos Prefab Sprout, já que o compositor estudou uns tempos para padre antes de abraçar uma carreira musical. E “Michael” também aborda a religião, neste caso escrita do ponto de vista de Lúcifer a pedir ajuda ao Arcanjo Miguel para escrever uma carta de perdão a Deus. Com vozes duplicadas em graves e sintetizadores que replicam coros estilo Enigma, mais uma vez temos os temas de arrependimento, e de memória. E já a fechar a parte mais religiosa aparece “Mercy”. Desta vez mais confessional, o autor pede misericórdia e amor. Pode ou não ser cantada pelo personagem da música anterior (É). Antes de terminar o disco, ainda temos mais duas canções, uma delas single deste álbum, “Scarlet Nights”. Nesta canção o autor percebe o seu fim iminente, faz referências ao rio Jordão novamente e confessa que ainda assim, vai sentir falta de quem ama. E a fechar este álbum temos “Doo Wop In Harlem”, onde o autor, nostalgicamente, mal pode esperar por se reunir de quem gosta noutro plano de existência.
Jordan The Comeback, mais que um álbum podia ser três ou quatro, ou melhor ainda, é um espetáculo musical sem palco. Mas será então um disco verdadeiramente conceptual? Os temas versam a religião – tema que seria explorado também pelo disco Lets Change The World With Music, que a editora não quis lançar por medo da receção a um trabalho tão diferente, e que viu a luz do dia apenas em 2009 – mas também sobre a nostalgia, a fama, o amor e a companhia. É um disco otimista na sua visão do mundo, e tem um tom adulto nas suas composições. Talvez o problema seja que Paddy McAloon sempre foi muito inteligente nas criações, o que fez com que nunca tenha sido nem tão pop nem tão alternativo como quis ser. Ao mesmo tempo Jordan: The Comeback é a obra prima da banda, onde nenhuma música se sente a mais e que, com repetidas audições nos faz ter diferentes canções preferidas. Eu, que oiço este disco há mais de 30 anos, continuo a descobri-lo como se fosse pela primeira vez, a deixar-me levar pelos ecos, o baixo os famosos coros pontuados nas canções durante uma hora, e sei que nunca me vou cansar de, uma e outra vez, revisitar este trabalho, independentemente do estado de espírito que tenha. Talvez pelo tema, é uma escuta reconfortante, com a produção de Thomas Dolby que a meu ver, é o complemento perfeito à escrita de McAloon.
Nostalgia, amor, fé, legado e otimismo, assim é Jordan: The Comeback.