12 de Fevereiro, nove horas da noite. Não cabe nem mais uma alma no São Luiz. Está prestes a começar o concerto de apresentação do segundo álbum de Luísa Sobral There’s a Flower in My Bedroom. Começamos a ouvir os primeiros acordes de “Stormy Weather” (velho standard celebrizado por Billie Holiday) e a voz quente e anasalada de Luísa ecoa na sala de espectáculos mais bonita de Lisboa. Procuramo-la mas apenas encontramos a sua sombra recortada contra um pano branco. Canta à viola, sentada numa velha cama de ferro, tudo pintado a negro-sombra. Quando a canção acaba o pano sobe e a silhueta desaparece. Um banho de luz ilumina então João Salcedo no piano, Carlos Miguel na bateria e João Hasselberg no contrabaixo, o fiel trio que a tem acompanhado nestas andanças. Três músicos de excepção que têm um dom: manterem sempre uma certa discrição para que a voz única de Luísa Sobral brilhe ainda com mais fulgor. Luísa Sobral aparece por fim.
Veste um vestido azul veraneante, que reforça o seu ar de eterna catraia, como se o tempo não passasse por ela. De viola a tiracolo, canta “I was in Paris Today” e perguntamo-nos como é que daquele corpo franzino consegue sair uma voz tão possante. Lá atrás desce outro pano, um jardim de papoilas vermelhas. Diz que esperava não estar nervosa por estar a cantar na sua cidade natal mas que afinal o nervoso miudinho teimou em visitá-la. A ser verdade, disfarça-o muito bem: vemos a Luísa do costume, confiante e espirituosa, uma entertainer nata que parece ter nascido num palco.
Segue-se “Not there Yet”, uma das poucas canções do primeiro álbum (Cherry on my Cake) interpretadas nesta noite. Mostrando os seus dotes de multi-instrumentista, Luísa toca harpa neste tema. Mais tarde tocará piano em “Rainbows”, metalofone na macabra “Clementine” e banjo em “I remember you”. Isto sem contar com o trompete que ouvimos em “Cuantas veses” (cantada em castelhano): é Luísa que com a voz imita o seu sopro na perfeição. Neste tema, o trompete imaginário de Luísa e o piano de João Salcedo entram os dois num divertido despique.
Essa versatilidade, em que os diversos músicos em palco vão assumindo diferentes papéis, é uma das marcas do concerto. Por exemplo, em “She walked down the aisle”, é o próprio João Salcedo que faz dueto vocal com Luísa, fazendo assim a vez do crooner inglês Jamie Cullum, que participara na gravação do tema em disco.
“As the night comes along” é um dos momentos mais comoventes da noite. Luísa recorda a sua avó, que perdeu a razão de viver quando o avô morreu. Inventa então uma história alternativa, em que uma viúva se recusa a aceitar que o amor de uma vida partiu: fala com ele, serve-lhe o pequeno-almoço, inventa diálogos imaginários para combater a solidão. Paradoxalmente, ou talvez não, é uma música cheia de balanço, acompanhada por um baixo eléctrico e uma bateria retumbante. Luísa brinca, advertindo: “Eu vou dançar nesta canção, o que não é muito bom: eu fui expulsa do ballet”.
O groove continua com “Mom Says”, single de apresentação de There’s a flower in my bedroom. Por um momento, aquele country mexido transporta-nos para as pradarias do velho oeste. Respondemos à altura, cantando o refrão, estalando os dedos a e remexendo-nos nas cadeiras.
Em “The last one”, entra o convidado da noite: Mário Laginha. Tal como sucedeu na gravação do disco, Laginha acompanha a canção ao piano. Mas a surpresa da noite veio a seguir, com a interpretação conjunta de um inédito, o presente especial que Luísa nos quis dar. Laginha compôs a música e propô-la a Luísa com o título: “Para um filho distante”. Mas aquele título ressoou-lhe de imediato na primeira pessoa: estava longe do seu país, sentia-se a filha distante, pelo que alterou o título para “De um filho distante”, escrevendo a letra em sintonia. O curioso nesta interpretação é que foi o próprio Mário Laginha que emprestou a segunda voz, algo que nunca tínhamos visto antes.
Pouco depois, o momento cómico da noite. Luísa Sobral pega nalgumas canções rejeitadas pelos cânones tradicionais do bom gosto (“Toxic” de Britney Spears, “Não és Homem para Mim” de Romana; “My Heart will go on” de Celine Dion, “Wrecking Ball” de Miley Cyrus; e “Call me Baby” de Carley Ray Pepsen) e recicla-as, dando-lhes vida nova. Para acentuar o cómico da encenação, os seus músicos fazem umas danças disparatadas, numa divertida caricatura às coreografias habituais destas canções.
Em “Don’t let me down”, que repescou do primeiro disco, Luísa põe o público a cantar três vozes diferentes e sobre essa base começa a improvisar, num inventivo canto scat à Ella Fitzgerald. Depois, anuncia a última música. O público solta a interjeição típica de lamento e Luísa brinca: “tenho sempre pânico que ninguém diga “oooh” e que pelo contrário digam “Yeeé!”. A canção é “I remember you” (um country dançável) e o seu banjo irrequieto põe toda a gente a bater o pé.
Depois do encore, regressa com “You won’t take long”. Está agora sentada no chão e ao seu lado João Salcedo toca um piano miniatura, provavelmente roubado a Schroeder, o amigo de Charlie Brown. Em cima do piano, uma flor. Segue-se “Inês”: para compensar a ausência de António Zambujo, Luísa chama o quarteto de cordas para a frente do palco. Na swinging “Xico”, Luísa põe o público a cantar em uníssono e volta a imitar na perfeição um trompete inexistente. Despede-se com a folkie “I’ll be waiting” (sob o signo de Simon & Garfunkel), voltando a sentar-se na cama de ferro, desta vez sem qualquer jogo de sombras. No jarro de esmalte pendurado na cama de ferro, Luísa põe uma flor. Porque nas histórias tristes que Luísa Sobral nos conta há sempre uma centelha de esperança.
Alinhamento:
1- Stormy Weather
2- I was in Paris Today
3- What do you see in Lily
4- The letter I won’t send
5- Not there Yet
6- Cuantas veces
7- Clementine
8- She walked down the aisle
9- As the night comes along
10- Mom says
11- The last one
12- De um filho distante
13- Senhor Vinho
14- Rainbows
15- Quando te vi
16- Rapsódia (Toxic; Não és Homem para mim; My heart will go on; Wrecking ball; Call me Baby)
17- Japanese Rose
18- Don’t let me down
19- I remember You
Encore
20- You Won’t take long
21- Inês
22- Xico
23- I’ll be waiting
(Fotos: Mário Romano)
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