Voltar a Temporada de Verão foi um inesperado e abençoado acontecimento! A virada do ano fez-se, nas audições sucessivas desse álbum, na melhor das companhias.
Ano novo, disco antigo! Por vezes é bom trocar as voltas ao tempo, fintando os dias que correm neste início de 2020, recuando até 1974, aportando na Bahia, no Teatro Vila Velha da cidade de Salvador. Postas as coisa desta forma, este texto é, portanto, uma espécie de rentrée rétro, se assim podemos dizer. E podendo, façamos caminho, que o tempo não para, tanto em avanços como em recuos, como se percebe pelo que vai dito.
O disco Temporada de Verão (ao vivo na Bahia) não é um álbum de cabeceira, por assim dizer. Não haverá quem o tenha como trabalho de eleição, disco de uma vida ou coisa semelhante. No entanto, mais que não seja pelos nomes que reúne, é um disco sobre o qual deverá recair alguma atenção, sobretudo porque nele se encerram certas curiosidades e interesses. Depois dos exílios londrinos de Caetano e Gil, voltar a gravar na pátria baiana e ao vivo, era algo que seguramente desejariam os três tropicalistas, se bem que em 1974, o Tropicalismo já não era bem a mesma coisa…
Apesar de o disco sugerir um concerto partilhado, nada disso aconteceu. Os espetáculos de Caetano, Gal e Gil foram dados em dias diferentes, sendo que posteriormente foram colados alguns temas nas duas faces da grande rodela de vinil. Mais ainda: como as gravações originais não ficaram primorosas (a reedição remasterizada de Charles Gavin de 2006 é, no entanto, milagrosa), um dos temas de Caetano teve de ser gravado em sua casa, adicionando-se no princípio e no fim da mesma, os sons dos aplausos do público. De qualquer das formas, o que se ouve é ótimo.
A primeira faixa surge na voz de Gal Costa. É a primeira de duas. Trata-se de “Quem Nasceu”, tema de Péricles Cavalcanti, e a sobriedade da voz encanta desde o início. Gal vinha de gravar o disco Índia, de enorme sucesso, a começar pelas históricas capa e contracapa. No disco, já no lado B, canta ainda “Acontece”, do mestre Cartola.
Caetano Veloso apresenta-se por três vezes no disco, sendo que em cada uma há matéria de encantamento suficiente para estarem, todas elas, no top das nove composições do álbum. “De Noite na Cama”, tema seu já previamente cantado por Erasmo Carlos, surge aqui completamente despida, apenas com voz e violão. Mais tarde, nos anos 90, a mesma canção viria a fazer enorme sucesso na voz da carioca Marisa Monte. No entanto, a melhor faixa de Temporada de Verão é, inquestionavelmente, “O Conteúdo”. Num jeito meio jazzístico, meio roqueiro, meio swingante, a canção vai fazendo, na letra cantada, livres associações mais ou menos poéticas e existencialistas, aludindo, por exemplo, ao facto de um vidente baiano ter anunciado que Caetano “morreria dentro de três anos”. É uma enorme canção, entretanto totalmente esquecida, o que é difícil compreender. Para fechar a sua participação no álbum, outro momento de rara beleza. O tema “Felicidade (Felicidade Foi Embora)” de Lupicínio Rodrigues teve impacto na rádio, apesar dos seus mais de seis minutos de duração. É hipnótica, surpreendente, de grande e melancólica beleza. Foi o tema escolhido para encerrar o disco. Caetano Veloso vinha do enorme fracasso que fora Araçá Azul, pronto a trilhar os novos e brilhantes rumos que deram álbuns como Jóia, Qualquer Coisa e Bicho.
Quanto a Gilberto Gil, a ele coube-lhe a maior fatia sonora de Temporada de Verão (quatro temas seguidos, o primeiro finalizando o lado A, os restantes três já no lado seguinte) e a toada gira em volta do afro-samba-rock em estilo baião que bem caracterizava o baiano naqueles tempos. Maior mistura seria impossível. “Terremoto”, “O Relógio Quebrou”, “O Sonho Acabou” e “Cantiga do Sapo” são as canções escolhidas, todas elas apoteóticas.
Uma última nota de interesse em relação a Temporada de Verão é, talvez, podermos ver nele uma espécie de prenúncio, de um primeiro passo do que viria a ser o projeto Doces Bárbaros. Com a tour de Doces Bárbaros, surgiu um disco duplo ao vivo (um dos melhores álbuns ao vivo da história da música popular brasileira), assim como um documentário que bem merece ser visto. Aí, Caetano, Gal, Gil e Bethânia, partilharam o palco e muitas novas canções feitas com o propósito de celebrar os dez anos de carreira desses quatro monstros sagrados da MPB. Mas isso, como se sabe, é já uma outra história.