O trio de jazz futurista The Comet is Coming abateu-se ontem sobre Lisboa. Ingredientes: viagem, êxtase, raízes tribais, futuro apocalíptico. O dinheiro bem gasto, portanto…
The comet is coming! O cometa aproxima-se, tem avisado o trio inglês de jazz futurista, uma e outra vez. E nós, arrogantes e incréus, como temos reagido? Rindo e zombando da sua paranóia apocalíptica. Pois bem, ontem pagámos caro pela nossa soberba: o cometa sempre chegou, colidindo em cheio contra o Lisboa ao Vivo, castigando-nos com a sua fúria cósmica. Esta é a crónica possível da hecatombe anunciada.
Há muito que o saxofonista Shabaka Hutchings tem sido a figura tutelar do novo jazz londrino, multiplicando-se em inúmeros projectos. Não é à toa que, no seio dos The Comet is Coming, Hutchings se apresenta como King Shabaka, suserano indiscutível da efervescente movida. Qual não foi então o nosso espanto quando Shabaka se apresentou em palco em plano de igualdade com os seus dois comparsas. Os três, de óculos escuros e plebeias mangas cavas, fomando um triângulo perfeitamente equilátero: à esquerda, o teclista Danalogue, o raver da banda, ensopando os circuitos electrónicos retro-futuristas com “litradas” de speeds e MD; ao centro e atrás, o baterista Betamax, o coração polirrítmico do gangue, bombeando síncopes como se a sua vida dependesse disso; à direita, King Shabaka, sem a coroa, só o seu saxofone percussivo e propulsivo, mandando a sofisticação harmónica – típica do jazz – para o diabo.
O pretexto foi a apresentação do último álbum, Hyper-dimensional Expansion Beam, de 2022, a rodela onde a euforia rave mais se faz sentir. E que bem souberam as bojardas de ecstasy “Code”, “Pyramids” e “Atomic Wave Dance”, tribais e hiper-cosmopolitas ao mesmo tempo, mãe África do século 31.
O disco anterior, Trust in the Lifeforce of the Deep Mistery, de 2022, também foi abundantemente revisitado, desde o crowd pleaser “Summon the Fire” – Fela Kuti para o povo – até temas mais contemplativos e psicadélicos, fazendo lembrar o jazz cósmico e espiritual de Sun Ra e Pharoah Sanders. “Viagem” é agora a palavra-chave: para outras latitudes, outros futuros e outros recantos de nós.
Sendo a sua música instrumental, e quase nunca dialogando com o público, a ausência da palavra jogou a seu favor. É que o grito de animal ferido que é The Comet is Coming – e, em particular, o saxofone de Shabaka – não precisa da abstracção da língua para se exprimir. O que há neles de telúrico e corpóreo – a raiva e o desejo puríssimos jorrando como lava a escorrer – foi mais do que suficiente para os entendermos. Um cometa não precisa de explicações. Simplesmente, abate-se sobre nós.
Bela foi a última noite do mundo. Porque tudo foi como devia de ser.
Fotografias: Rui Gato