Reportagens

Primavera Sound 2023 Porto – Dia 1: o dia em que um belíssimo cometa ofuscou a estrela Lamar

Para a décima edição do Primavera Sound Porto, acrescentou-se mais um dia à tradição. Quatro em vez de três. Embora esta primeira data tenha sido mais curta em termos de concertos (uma espécie de warm up para o que decorrerá até sábado), a verdade é que o cabeça de cartaz era de peso. Mas já lá chegaremos, uma vez que é sempre boa ideia começar por onde se deve. Ou seja, pelo princípio.

Dia muito cinzento, algo chuvoso, o que retirou um pouco do colorido verdejante do recinto (aquelas pequenas elevações e declives fazem-nos sempre lembrar os cenários dos míticos Teletubbies, embora ontem sem o sol com rosto de bebé que espreitava, sorridente, por entre pálidas nuvens num céu azul), mas mesmo assim nada nos retirou a pica do regresso a um local onde milhares e milhares de pessoas já viveram momentos fantásticos, tendo em conta muitas das edições passadas. O nosso desejo é que a décima venha a ser mais uma de encher o olho, os ouvidos e a alma. E o primeiro dia teve os seus momentos, como seria de esperar.

A primeira nota vai, no entanto, não para a música ouvida, mas para o recinto. Mais cinco hectares de terreno, mais um palco do que em edições passadas, mais oferta de comes e bebes, tudo de forma a evitar as inúmeras filas da edição passada, uma vez que a lotação manteve-se como antes. A organização quis devolver ao Festival uma das suas marcas de excelência: condições satisfatórias para quem por lá passa, o que muito nos agradou e muito honra os responsáveis pelo evento. Parabéns!

Primavera Sound 2023 ©Inês Silva

Vamos à música, então? À hora marcada, os primeiros sons do Festival foram para a nossa Beatriz Pessoa. No palco principal (Palco Porto, novo no recinto, de costas voltadas para a conhecida anémona da rotunda do Queijo), Beatriz Pessoa começou com “Dona da Verdade”, apresentando o recente álbum Prazer Prazer. Três mulheres e dois homens em palco, todos com talento para que a alegria se sentisse em canções pop bonitas, boas para cantarolar quando as horas duram e apetece dar cor à voz. Há sons que fazem lembrar alguma MPB mais sonhadora, à maneira de Mallu Magalhães, que curiosamente assina alguns dos temas do disco. Também se nota o dedo competente de Marcelo Camelo na produção. Ao vivo, também se percebe esses pequenos pormenores que dão à lusa Beatriz uma corzinha de além mar. Beatriz referiu-se às duas perdas recentes da música brasileira (Gal Costa e Rita Lee), cantando “Vaca Profana”, idílica canção nascida do coco do mestre Caetano e eternizada pela voz da baiana, misturando-a com “Lança Perfume”, da nossa ovelha negra preferida. Não sei se o título do disco nasceu daí, mas Beatriz Pessoa anunciou estar grávida. Portanto, foi cheia de vida, a abertura do Primavera Sound 2023!

Beatriz Pessoa ©Inês Silva

Pouco depois, no Palco Vodafone (antigo principal) estava Georgia, carregada de autotune e batidas quase sempre iguais. Ela própria, sozinha em palco, tocava bateria eletrónica, cantava e dançava. O público agitava-se, girando braços no ar e dando às ancas. Festinha festivaleira garantida. Tudo pré-gravado, até a voz de Georgia, por vezes. O momento mais empolgante terá sido quando a cantora pediu um sapo de peluche que alguém abanava freneticamente no público. Isso já diz muito da apresentação em palco. Ficou com ele até ao fim, brincando com o animal. Para quem aprecia o que a britânica Georgia faz, terá sido bom. Discoteca ao cair da tarde. E ponto.

Georgia ©Inês Silva

Longe vão os tempos do fenomenal disco inicial dos Goldfrapp. Muito longe, mesmo. Felt Mountain foi uma marca para muitos dos ouvidos atentos do mundo. Mas depois, muito provavelmente, o interesse comercial ditou outros rumos, e a dupla britânica perdeu o carisma para ganhar mais notoriedade. A solo, Alison Goldfrapp continuou a fazer música dançante, carregada de ritmo, mas canções memoráveis (à maneira do tal momento inaugural), nem vê-las. No entanto, competência para animar alguns milhares à frente do Palco Porto, não lhe faltou. Diz Alison que T-Rex, Iggy Pop e Kate Bush são algumas das suas inspirações, o que a ser verdade, não transparecem na música que faz atualmente. Talvez lhe faça falta Will Gregory, o homem com quem se apresentava como Goldfrapp. Este primeiro disco a solo (The Love Invention) é indistinto, dancefloor sem grandes momentos, mas há que lembrar que mais de 30 anos de carreira não é coisa de somenos. Devemos-lhe respeito pelo facto de permanecer irrequieta, sempre em busca do acorde perfeito. Ontem, quando o pouco sol que havia começava a dar sinais de fraqueza fatal, ver e ouvir Alison Goldfrapp resultou num misto de sensações, nem sempre vencendo aquelas que nos dão mais prazer. Mas de cerveja na mão e em boa companhia, tudo melhora. Foi o que nos salvou.

Alison Goldfrapp @Inês Silva

Um pouco mais tarde, pelas 21 horas, a pop adolescente de Holly Humberstone fez vibrar muitos teenagers no Palco Vodafone. Muito novinha, a inglesa tem um ar meio emo desleixado, mas mostrou-se capaz de fazer canções engraçadas, algumas bem orelhudas.  Há pelos seus sons nítidas influências de uma certa pop que se faz agora, nomeadamente de Lorde, para referir apenas um nome. Por isso, não é de estranhar algum histerismo junto às grades, muitos suspiros de olhos revirados como se estivessem na presença de uma proeminente deusa musical. É interessante observar estes fenómenos, que nada de mal trazem ao mundo, na verdade, e que são recorrentes desde que existe memória musical. As canções são muito simples, que vão crescendo até chegarem ao momento em que um refrão poderoso toma conta do acontecimento, e a partir daí é o delírio cantado em uníssono. Mas também há baladas no repertório de Holly Humberstone, e aí as caras do público parecem estar à beira de uma ou outra lágrima fácil. Mas depois, na canção seguinte, a dança acontece é volta a haver risos e cabeças no ar. A nossa, no entanto, permaneceu algo fria perante um concerto para gente muito nova e bem intencionada na expressão dos seus prazeres e emoções à flor da pele. Valeu por eles.

Holly Humberstone ©Inês Silva

O dia tinha sido das mulheres, até que pelas 22 horas, no Palco Porto (ontem só dois palcos funcionaram, daí o ping-pong constante), entrou de rompante o primeiro rapper da noite, o muito esperado Baby Keem. O músico norte americano disparou versos como quem dispara balas, mais rapidamente do que o lendário pistoleiro do velho oeste Lucky Luke. A música agora era outra. A pop tinha ficado para trás e a eletrónica pesada que se fazia ouvir tinha o seu inquestionável peso. E assim, num ápice de tempo, o público parecia autómato, comandado por quem a ele se dirigia do palco. Os mesmo gestos, a mesma pose, cópias de cópias de cópias. Baby Keem é um dos homens do rap do momento, fazendo alguma sombra (era o que se ouvia dizer, pelo menos) à estrela máxima da noite, que pouco depois subiria a esse mesmo palco. A rapidez com que Baby Keem se guindou ao atual estrelato será, seguramente, competência sua, mas uma mãozinha marota de super vedeta Rosalía terá, eventualmente, ajudado um bocadinho. A base dos temas pouco varia, mesmo tratando-se de um rapper algo disruptivo. Alguns dos temas de The Melodic Blue foram os mais saudados. Temas como “Hooligan” ou “No Sense”, por exemplo. O homem das mixtapes não parou um segundo. À sua frente, muita gente aquecendo gargantas para Kendrick Lamar, outra tanta ensaiando versos e atitudes para o final da noite, e nós esperando por The Comet is Coming.

E eles chegaram, debaixo de chuva. Pareciam trazer notícias do fim do mundo da melodia, no seu jazz rock psicadélico de grande estilo. Salvaram a noite e trouxeram, finalmente, um pouco de música ao Palco Vodafone. Shabaka Hutchings e o seu novo jazz são salvíficos, uma espécie de Kamasi Washington on deep drugs. Apenas com três elementos em palco (Dan Leavers nas teclas e Max Hallett na bateria), os The Comet is Coming foram capazes de animar os mais empedernidos, se é que os havia. Mesmo debaixo de uma chuva desanimadora, todos aguentaram de forma hercúlea e dançou-se quase tribalmente ao som do saxofone de Shabaka. Em todos os longos temas o caminho era até ao clímax. O nome deste power trio britânico não poderia ser mais adequado, tendo em conta o som que produzem. Face ao ciclone que promoveram em palco, a chuva que se fazia sentir foi coisa de meninos. Coltrane e restantes deuses do instrumento de Shabaka Hutchings devem estar orgulhosos dele. Enorme! Enormes, estes “cometas”!

The Comet Is Coming ©Inês Silva

Depois de uma breve pausa na chuva, o mar de gente deslocou-se até ao Palco Porto para aquele que foi, seguramente e para muitos, o concerto mais esperado da noite. Kendrick Lamar entrou mais ou menos à hora certa, e a água voltou a cair de forma copiosa. Muita gente não saiu debaixo das proteções das zonas das refeições, de lá vendo e ouvindo o possível aos olhos e ouvidos. Outros apressaram-se a mais uma lavagem de corpo e alma, avançando até perto do palco. Lamar lá ia debitando as suas rimas (“spitting bars, as they say”) e o concerto foi seguindo o seu rumo. Temas como “Loyalty” (mas sem Rihanna, obviamente), “King Kunta” e “Humble” fizeram o sucesso esperado. Só por volta da uma da manhã é que o tempo se fez mais amigo, o que animou os festivaleiros convictos de que Kendrick Lamar é um dos grandes do hip hop mundial. É provável que estejam certos, mas alguma surdez seletiva deste vosso escriba escusa-se a ser mais taxativo. Alguma vertente mais lírica, por vezes, trouxe ao concerto algumas nuances. Outras vezes, o flow acelerava e o discurso era outro, mais duro e seletivo. O norte americano equilibrou bem as coisas.

Por fim, quando se faziam as contas finais sobre o que havia acontecido à nossa frente ao longo de todo o dia, o alívio do fim da chuva e a certeza do dever cumprido estavam de mãos dadas. Até mais logo, Primavera.

Fotografias: Inês Silva

Comments (1)
  1. Maria Martins diz:

    Magnífico texto. Tão bom que fiquei a conhecer nomes e grupos de quem nunca tinha ouvido falar. E percebi que não me fazem falta nenhuma. Bom, bom e ler os teus textos. Claros e bem expressivos nas subtilezas, ‘melodias’ e colorido. Um misto de sensações bonitas.

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