Surma em modo banda de uma mulher só conquistou o Musicbox. Descobrimos-lhe o segredo. Cor e anarquia em partes iguais…
Inflação, juros, o diabo a sete, a vida não está fácil, há que contar cada tostão. Por isso, Surma apresentou-se no Musicbox em modo one woman band, era isso ou arder com a hipoteca. Como raio uma criatura com apenas dois braços consegue ao mesmo tempo cantar em dois microfones, tocar três instrumentos e manipular uma profusão de maquinarias, de modo a parecer que está lá metade da orquestra metropolitana? É difícil de entender mas, lá está, a necessidade aguça o engenho.
Surma poupou também na roupa, vestindo uma camisa às riscas do pai que quase lhe chegava aos joelhos, com gravata e tudo – ah e tal, não é da crise, é um statement de androginia. As mangas arregaçadas deixavam ver tatuagens nos braços, orgulhosamente toscas, como se desenhadas pela sobrinha com uma esferográfica. A laca no cabelo e maquilhagem nos olhos davam-lhe um ar de Bowie, fase Ziggy, apaixonando por igual os miúdos e miúdas que se encontravam no quase cheio Musicbox.
E lá ia Surma, cirandando pelo palco com as suas botas gigantes, sem tropeçar na parafernália de geringonças, sabe lá Deus como: a guitarra ali, o baixo acolá, as teclas não sei onde, o pedal não sei o quê, urdindo, qual feiticeira de Oz, o seu colorido universo, transbordante de imaginação, fintando regras, galgando interditos, vale tudo no estranho e mágico mundo de Surma.
Como seria de esperar, o segundo disco, Alla, de 2022, dominou o alinhamento, que é preciso vender a rodela ao mundo, e que o mundo precisa de a comprar, que é das coisas mais desconchavadamente bonitas que a música portuguesa nos tem dado. O apogeu aconteceu com o hino “Islet”, uma ode ao agarrar a vida pelos cornos à nossa inegociável maneira.
Mas está escrito: nem só de Alla vive o homem mas de toda a música que procede de Surma. Por isso, o primeiro single “Maasai”, de 2016, e dois temas do primeiro disco Antwerpen, de 2017, também passaram por aqui, que a sua melancolia islandesa também é filha de Deus. E até os Velvet marcaram presença com uma inusitada versão de “Femme Fatale”, só baixo e uma excêntrica batida.
Até que Surma anuncia a última música, o noise rock de “Wanna Be Basquiat”, de 2019, com distorção de guitarra à Sonic Youth a justificar o repto: “se quiserem fazer mosh estão à vontade”. No final, pousa a guitarra no chão, ainda escorrendo feedback, e abandona o palco. Claro que o público não descansou enquanto não voltasse para um encore. Surma lá condescende, repetindo a retro-futurista “Huvasti”.
“Lisboa é sempre casa, vocês são sempre casa”, agradece, comovida. E nós retribuímos o carinho. Surma é nossa casa também…
Fotografias: Rui Gato