Scott Walker é uma figura interessantíssima. Para além do óbvio talento enquanto cantor e compositor, o músico de Ohio distingue-se também pela invulgar carreira de mais de 50 anos. Digo invulgar pelo facto de ter sido marcada por uma rutura inequívoca, que começou a ganhar forma decisiva desde o desconcertante Tilt (1995), embora já em discos anteriores se percebesse a opção por um caminho mais denso, mais sinuoso, longe dos tempos das canções tradicionais dos Walker Brothers, por exemplo. Scott Walker é também uma das mais cultuadas figuras da música popular do nosso tempo. Atravessou a popularidade, recebeu-a com alguma estranheza, e desapareceu dos holofotes durante algum tempo, até reaparecer com uma outra e inesperada postura artística, facto que ajudou ainda mais a tornar-se a figura mítica que ostenta até hoje. Não me é fácil escolher apenas um disco de Scott Walker para um post (este mesmo, obviamente) do Altamont, mas à força de querer escrever sobre um músico que há tanto me fascina, a minha opção acabou por recair em Scott 4. Para além de ser um álbum verdadeiramente superlativo, ele é também marcante no percurso discográfico e artístico de Walker, como muitos dos leitores destas linhas saberão.
Comecemos pelo título, que tem algo de enganador. Scott 4 é, na verdade, o seu quinto longa duração a solo, uma vez que a sequência iniciada com o álbum Scott, e posteriormente continuada em Scott 2 e Scott 3 é interrompida com Scott: Scott Walker Sings Songs From His T.V. Series. Só depois, em novembro de 1969, surge Scott 4. Na capa do disco, embora apenas na versão original, o nome que nela se lia era Noel Scott Engel, sem o famoso e conhecido apelido Walker. O álbum revelou 10 canções imaculadas, todas elas da autoria do músico, coisa que acontecia pela primeira vez na sua carreira. Nisto, Scott 4 é também um disco de rutura com um passado que privilegiava o canto de temas alheios, em que as composições de Jacques Brell, por exempo, ocupavam lugar bem destacado. O disco foi um falhanço comercial, e o facto transtornou bastante Scott Walker. Esse insucesso comercial prolongou-se durante vários anos e vários discos, tendo sido essa a razão que terá levado ao súbito afastamento discográfico do músico durante cerca de 10 anos, até regressar com o episódico Climate of Hunter (1984), e depois mais 11 anos passaram até o já citado Tilt fazer surgir o seu nome no mundo da música. Mas voltemos a Scott 4, e ao que ele tem de melhor, as suas 10 fabulosas canções. Que temas referir, para dar conta da imensa qualidade do LP? As mais do que óbvias “The Seventh Seal”, “The World’s Stongest Man”, “Angels of Ashes” ou “Boy Child”? Ou as menos conhecidas, mas igualmente extraordinárias “Duchess”, “Hero of the War” ou “The Old Man’s Back Again (Dedicated to the Neo-Stalinism Regime)”? Não há, verdadeiramente, por onde escolher, uma vez que esse processo de opção não faz sentido algum. Todas as canções são, como já disse e repito uma vez mais, fantásticas e marcantes. A questão que deve ser colocada é outra, e bem diferente das anteriores: como foi possível ignorar-se tão olimpicamente este disco durante tanto tempo?
As grandes orquestrações de Scott 4 dão ao disco um brilho especial, bem como os coros que por vezes se fazem ouvir. Outra característica interessante prende-se com o facto dos seus temas versarem assuntos tão avulsos, quanto inusitados. Desde a explícita homenagem ao realizador Ingmar Bergman em “The Seventh Seal”, passando por uma das mais belas canções de amor que conheço (“The World´s Strongest Man”), até a uma feroz crítica à ocupação da Checoslováquia por parte da União Soviética em “The Old Man’s Back Again (Dedicated to the Neo-Stalinism Regime)”. A sua voz perfeita passeia-se com sumptuosidade por entre ritmos funk, guitarras espanholas e vestígios country. As melodias são arrasadoras, e as letras (bem como os temas) das canções começam a revelar um homem preocupado com o mundo, um homem em busca da solidão, do afastamento. Diz-se que Scott Walker, durante a gravação de Scott 4, usou ao pescoço a chave de uma cela de um mosteiro beneditino na Ilha de Wight, local onde fazia retiros espirituais há já algum tempo. Todas estas manifestações de recolhimento e de sensibilidade de pensamento, talvez possam desvendar a razão da opção por uma outra persona artística, ao escolher o seu nome real e não o artístico para constar da capa inicial do disco. Independentemente de todas estas considerações, o legado de Scott 4 permanece forte, e isso é mesmo o que mais importa. Ouvi-lo continua a ser um dos meus vícios preferidos. Um vício bom, que soa bem, que faz bem, e que acrescenta em mim sempre qualquer coisa mais após uma nova audição.