Desde há muito que o Altamont tem dado o devido destaque à banda brasileira Carne Doce nas páginas deste site. Fomos percebendo e entendendo a sua evolução, o seu crescimento, a forma como se foram transformando num projeto vigoroso e de enorme qualidade. Hoje, no entanto, fazemos um pequeno desvio nesse trajeto e mencionamos apenas (ou quase) o casal nuclear e fundador do grupo, Salma Jô e Macloys Aquino. A razão é simples: eles estão lançando o primeiro longa duração, depois do bonito EP Salma e Mac, de 2021, que também mereceu a nossa atenção. O álbum saiu ontem com o título Voo Livre. A propósito de tudo isto, e voando por cima da distância transatlântica que nos separa, o Altamont resolveu entrevistar o casal, que desde logo e mais uma vez, se mostrou recetivo ao encontro de palavras, de perguntas e respostas.
Altamont: Voo Livre parece ser um prolongamento lógico do ep lançado no ano passado, um embrião que agora deu frutos maiores e mais sumarentos. Concordam?
Mac – Sim, embora tenham traços estéticos e humores bastante diferentes. Vejo o ep como um balão de ensaio do projeto duo, pela urgência de como surgiu (pandemia). Mas também vemos o Voo Livre como uma experimentação, tanto de produção como de linguagem, sendo que já começa a apontar pra gente o que pode vir a ser a maturidade deste processo.
Altamont: Regressemos um pouco aos terríveis anos de reclusão por via da pandemia: é nesse período que nasceu a ideia deste projeto a solo? Como é que vocês, como casal, viveram artisticamente esse período?
Mac – Foi duplamente penoso, porque no Brasil, para além da pandemia, sofremos ainda o impacto do pandemónio (político, social e económico), tomando emprestada esta expressão de Lenine, para se referir ao atual governo. Este contexto nos acuou e acendeu a urgência de produzir com o que tínhamos nas mãos, apenas os dois, voz e violão.
Altamont: Gostávamos de esclarecer o seguinte: o projeto Salma e Mac porá em risco, de alguma forma, a banda Carne Doce, ou será sempre entendido como um escape, uma maneira de fazer algo que musicalmente não tem espaço de existência na vossa banda?
Mac – Na esteira da resposta anterior, o que colocou não só a Carne Doce, mas todo o ecossistema que envolve pequenos e médios artistas independentes no Brasil em risco, nos últimos anos, foi essa associação pandemia-pandemônio. O projeto duo veio para tentar atenuar os efeitos disso em nossa carreira. São projetos com entregas sonoras diferentes, que se realizam em espaços diferentes, que podem servir públicos diferentes, abrindo mais possibilidades de trabalho. E sim, nesta tentativa estamos desenvolvendo algo que é novo para nós musicalmente, mesmo inspirado numa tradição musical brasileira.
Altamont: Quem olha para a ficha técnica deste vosso primeiro álbum, não pode deixar de reparar no nome do produtor. Kassin é um ás de trunfo, um dos melhores produtores atuais da música brasileira. Como foi que isso aconteceu, como chegaram até ele?
Mac – O primeiro contato com Kassin foi num show Carne Doce, no Rio de Janeiro, em 2018, que ele assistiu. Em dezembro de 2021, após outro show da banda no Rio, aproveitámos, Salma e eu, para visitá-lo e a conversa foi ótima. Mostrámos alguns protótipos de canção em voz e violão, e ele gostou, o que nos deixou muito animados e confiantes, exatamente por ser um ás da música brasileira elogiando nossas canções. Dali partimos para a possibilidade de ele nos produzir, e deu certo.
Altamont: No entanto, não é apenas Kassin que se destaca nos participantes do disco. O mesmo acontece com Leonardo Reis e Felipe Pacheco Ventura, nomes que já tocaram com muitos craques brasileiros. Como aconteceu a escolha desses nomes para com eles trabalharem?
Mac – Leo Reis é vencedor de dois Grammy Latino pela participação em discos de Caetano Veloso e de Gilberto Gil, e é apenas um entre a rica rede de contatos de músicos excepcionais de Kassin. Foi uma escolha dele. Conhecemos Leo já no estúdio, que tanto nos impressionou com sua criatividade e habilidade musical, mas também nos encantou. É uma pessoa maravilhosa. Pacheco já era amigo, já havíamos nos topado na cena indie brasileira anos antes, Carne Doce e Baleia, sua antiga banda.
Altamont: Este disco tem muito “sol e mar”, é solarengo, “muito Rio de Janeiro”, se é que nos fazemos entender. Mas é também, e sobretudo, de uma enorme sensualidade, por vezes íntima, que vocês resolveram partilhar. Esta nossa interpretação faz sentido para vocês?
Salma – O disco não é autobiográfico, acho que a letra que tem mais a ver com nosso relacionamento é “Voo Livre”, mas ainda assim não é um retrato nosso. Acho que a própria metalinguagem da coisa é que traz esse apelo. Um casal que compõe coisas sensuais junto é sensual, é íntimo. Lendo essa pergunta me veio à mente “Garota de Ipanema”. O que mais me seduz nessa música não é a relação do poeta com a musa, mas a idéia dele sentado num mítico bar, assistindo e compartilhando a cena com um colega, é essa intimidade pra quem ele está falando “olha,…”, que é mais sensual para mim. Acho que sempre tem esse “olha” implícito nas nossas canções, pelo fato de sermos um casal compondo juntos.
Altamont: A propósito da letra da canção “Sobremesa”, surgiu-nos uma dúvida: no verso “com açúcar, com afeto e safadeza” há algum piscar de olho ao bem antigo tema de Chico Buarque “Com Açúcar, Com Afeto”? Se sim, qual a razão dessa citação?
Salma – Recentemente, houve na internet uma sensação com um comentário do Chico, dizendo que não cantava mais a música, que ela era anacrónica. Então, a letra original estava “no ar”, quando eu a aproveitei para a letra de “Sobremesa”, assim mesmo, despretensiosamente. O verso entra sem nenhum peso da música original, só porque nas duas há o preparo da sobremesa, o piscar de olho é só esse mesmo. Ao mesmo tempo, o Chico Buarque deve ser a minha maior referência de letrista brasileiro, acho que inclusive já o citei outras vezes em canções da Carne Doce.
Altamont: Por falar em Chico, o desvio musical feito em Voo Livre aproxima-vos desse vasto terreno apelidado de MPB. É uma grande responsabilidade, parece-nos. Que relação cada um de vocês tem com os nomes de Chico, Caetano, Gil e Milton?, isto para fazer referência apenas aos monstros mais sagrados da música popular brasileira.
Salma – Chico foi um ídolo dentro da minha casa, para minha mãe e minhas irmãs, e eu herdei essa admiração também. Além disso, ele foi um ídolo para muitas das minhas professoras e uma fonte didática frequente. Minha relação com a MPB é muito emotiva, textual, pouco técnica. Mesmo sendo o estilo que mais ouvi durante a vida toda, não me atreveria a me arriscar a fazer um trabalho que tivesse essa responsabilidade de tradição, ou homenagem, ou mesmo de referência. Acho que o que assegurou que eu podia experimentar essa linguagem foi o respaldo do Kassin, que realmente trabalhou com esses grandes monstros e ainda assim achou uma boa idéia produzir o nosso álbum.
Altamont: Apesar de neste álbum haver um pequeno corte, digamos assim, com o vosso trabalho com os Carne Doce, há dois temas da banda presentes no disco, “Cetapensâno” e “Hater”. Qual a razão de irem buscar essas canções para que constem em Voo Livre?
Salma – Pela possibilidade de apresentar essas canções para um público que ainda não as conhece, que não ouviria Carne Doce por causa do estilo. E porque elas realmente também ganharam uma nova vida nesse formato, com esses arranjos.
Altamont: De que forma é que vocês descrevem Voo Livre, e quais os verdadeiros propósitos (artísticos / pessoais, por exemplo) por detrás do álbum?
Salma – Nós já temos 9 anos de experiência de indie rock, mas esse é o primeiro álbum do projeto em duo, é a primeira vez que trabalhamos com um produtor musical de fora do nosso círculo, e a gente sente que está começando a aprender essa linguagem mais suave, e por isso mesmo desafiadora. É um álbum que tem esse sentido ambivalente de experiência com excitação de recomeço, de um novo amor, talvez.
Altamont: Em 2019, os Carne Doce vieram a Portugal para uma série de concertos. Agora, que a normalidade se vai de novo instalando, será possível ver-vos de novo por cá? Como Salma e Mac e como Carne Doce?
Salma – Esse é o nosso plano para o primeiro semestre de 2023. Nossa tour em Portugal foi uma das experiências mais felizes da banda e queremos muito ir de novo. Já estamos negociando os shows. E claro que vamos aproveitar e apresentar ambos os projetos onde for possível.
Altamont: Estamos a chegar ao fim desta pequena entrevista. O Altamont sempre vos recebeu de braços abertos. Julgo que fomos mesmo os primeiros em Portugal a reconhecer o vosso valor e a estimá-lo. Por isso, gostaríamos que as vossas últimas palavras fossem para quem nos lê. Algum recado especial que queiram deixar para os leitores do Altamont?
Mac – Foram, sim. Ficamos muito felizes todas as vezes que escrevem sobre nós, porque ressignificam o nosso trabalho, ampliam as nossas possibilidades. Muito obrigado ao Carlos e a todos os leitores do Altamont! Esperamos vê-los novamente em breve.
Salma – Esperamos que gostem das músicas. E por favor, compartilhem se gostarem!