
Depois de uma visita a um jantar comunitário do Serve the City Lisboa, Jónatas Pires decidiu fazer um disco cuja receita reverteria toda a favor da organização. Lançado há um ano, o segundo volume de um projecto que começou com a vontade de apoiar as crianças de Rabo de Peixe, na Ilha de São Miguel, o disco Tudo É Vaidade II – Há Lugar, deu o mote para uma festa comunitária onde alegria foi coisa que não faltou, tendo sido oferecidos 200 lugares a “amigos de rua” pela organização e mais uns tantos oferecidos directamente pelos voluntários.
Foi de sorrisos e partilha que se fez a noite Tudo É Vaidade no Cinema São Jorge. Jónatas Pires foi profeta e falou-nos, pela canção que se fez pão, daquilo que é bom e realmente importa. À entrada, voluntários identificavam cada um com o seu nome na lapela, tal e qual se faz nos jantares comunitários. Era também dado um cartão que falava sobre o projecto e onde se tinha de escrever o nome para mais tarde o trocar com alguém que não se conhecesse. Já no palco, seria o grupo [Sim &] Teatro de Improviso que começaria por divertir e interagir o público, pondo toda a gente bem disposta e à vontade. Três jogos de improviso com temas dados pelo público puseram de lado a vergonha dos actores e do público, que esperava ansiosamente pela banda.
Findado o teatro, entrava em palco o coro Gospel Collective, composto especialmente para a ocasião, seguido pelos músicos de peso que acompanhariam Jónatas Pires no seu grito de guerra: Filipe Sousa (Os Pontos Negros) na guitarra, Domingos Coimbra (Capitão Fausto) no baixo, Silas Ferreira (Os Pontos Negros) e Luís Nunes (Walter Benjamin) nos teclados, David Pires na bateria, André Murraças no saxofone, Tiago Martins no piano e César Nogueira no violino. Mais tarde, juntar-se-iam Samuel Úria, Selma Uamusse (que também cantava no coro) e Ana Moura.
“Mocidade” seria a primeira música a ser tocada pelo colectivo, já com Jónatas em palco, seguida de “O Estômago é Consolação”, ambas do primeiro disco Tudo É Vaidade. As novas canções e as histórias dos jantares chegavam com “Rosto Negro”, um hino de lamentação quase-Arcade Fire, em que se fazia – como em todo o concerto se fez – canto alegre de coisas tristes. Selma Uamusse saía do lugar de corista para acompanhar na linha da frente a canção “Só me Resta Chorar”, uma bonita balada que provou – como em todo o concerto se fez – que a fé move montanhas. Sobre o pão, o primeiro a ser comido ao jantar, uma dança à la Paul Simon ecoava pelas paredes da sala Manoel de Oliveira enquanto o público dançava de pé, celebrando a música como motor de união de pessoas completamente diferentes, sem barreiras nem conflitos.
No dia em que a Primavera começava a dar ares da sua graça, era precisamente a “Primavera” que era cantada, enquanto Jónatas ia fazendo paralelismos com episódios emocionantes ligados às canções. “Não saio daqui enquanto toda a gente não cantar”, dizia, mas nem todos cantavam porque ninguém queria que acabasse. A energia ia aumentando cada vez mais, desta vez ao som de “Um Beco com Saída”, onde o coro se fazia ouvir e bem, vindo o ambiente a acalmar em “A Arte de Descomplicar”, com Jónatas a solo em palco, contando com o companheiro de estrada Filipe Sousa para o meloso solo no final da canção.
Era então a vez de Samuel Úria pisar o palco, entre palmas e assobios, para fazer das tripas coração em “Fui Quebrado”. E os convidados especiais não ficariam por aí, entrando Ana Moura para “Tive Tudo”, cujos aplausos finais foram interrompidos para um caloroso solo de piano e violino. Jónatas voltava ao primeiro disco para o canto lacrimoso “Convivendo Com a Morte”, em homenagem ao seu pai, e “Escada Sem Corrimão”, uma advertência para o cuidado que devemos ter a subir a escada que é a vida. De seguida seria apresentada a banda que ajudou a tornar possível, juntamente com uma grande rede de voluntários e apoios, um dos gestos mais bonitos da música portuguesa em muitos anos.
“Há Lugar”, a canção que deu o nome ao segundo disco e “Mais Perto Quero Estar”, hino cristão supostamente tocado no naufrágio dos navios SS Valencia e RMS Titanic, alimentou ovações de pé e aplausos até à dormência a toda a gente que ali estava, desde quem cantou no palco e na plateia a quem contribuiu monetariamente ou simplesmente com um bocadinho do seu tempo para uma causa tão nobre. Por mais ténue que fosse a ligação entre as pessoas, não havia ninguém que estivesse sozinho. Afinal de contas, estávamos num concerto comunitário, onde se provou que ainda há lugar, num mundo em constante conflito, para gestos de pura bondade, sem a obtenção de nada em troca senão a felicidade dos outros.
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(Fotos gentilmente cedidas por Vera Marmelo)