As Berlengas nunca existiram assim, desta forma e deste jeito. Benjamim redesenhou esse arquipélago, fez dele uma outra coisa. E assim nasceu uma obra que não cabe no mapa comum dos nossos discos e das nossas canções.
“Nenhum homem é uma ilha isolada.”
John Donne
John Donne, conhecido poeta metafísico inglês dos séculos XVI e XVII, sabia bem o que dizia. Nenhum ser humano é apenas aquilo que supõe ser. Daí que, por essa ordem de razão, a arte – extensão mais dignificante da presença do homem na terra – revela aquele que a criou, ultrapassando em muito a escala em que foi feita, criando ramificações com quem a vê, escuta, entende.
Servem estas primeiras palavras para introduzir As Berlengas, extenso pedaço de música, de ideias, de propostas criadas na mente atenta e antenada de Benjamim, o homem que, por momentos, ficou cansado de escrever canções.
As Berlengas é uma jornada épica, um marco na moderna música portuguesa. O futuro ajuizará a veracidade desta afirmação, naturalmente, mas estamos em crer que teremos razão. Dois outros discos elevam-se à nossa memória quando pensamos neste recentíssimo álbum de Benjamim. São eles, salvaguardando as devidas distâncias e sem paralelismos de estilos, importância ou outras quaisquer formas de comparação, Por Este Rio Acima e Auto da Pimenta. A razão parece-nos ser a seguinte: os três álbuns em questão são fruto de ideias prodigiosas, em que homem, terra, mar e vontade de desbravar artisticamente essas instâncias poderão ser postos em equação. E assim, de forma bem mais comedida agora do que nos séculos passados, a conquista portuguesa fez-se mais próxima. A “terra à vista! de outros tempos” descobriu-se a poucos quilómetros da costa oeste de Peniche. E a partir deste instante, o exótico arquipélago rochoso passou a ser artisticamente nosso! Ou melhor, de quem o souber ouvir.
As Berlengas é um saboroso osso duro de roer. Não é fast food auditivo, não faz favores a ninguém, dificilmente imaginamos seja quem for a cantarolá-lo do início ao fim. Desde logo pelos seus ingredientes não serem os mais comuns num disco de um artista cantautor pop-indie-rock: não é um disco de canções, embora também as tenha. É uma odisseia, e como obra maior, também apresenta um prólogo, onde tudo diz, toda ela se revela, da forma mais democrática possível. Quem quiser seguir caminho depois de ouvir atentamente “As Berlengas (Parte 1)”, está por sua conta e risco. Esse tema-prólogo informa-nos sobre o que poderemos encontrar em todo o álbum. Muita música instrumental, que quase sempre se espreguiça sem olhar para o relógio fixo do tempo das canções, muito piano, alguns ritmos que convidam à dança (sim, pode-se bem dançar com As Berlengas, talvez embalados pelas metáforas rítmicas que nele encontramos, levando com o bom vento dos instrumentos na cara, no corpo, agitados pelo balanço das águas sonoras e marinhas), vozes que são de Benjamim, embora algumas delas modificadas de forma a parecerem vozes imaginadas no exotismo da ilha maior do arquipélago, muita electrónica e muito bom gosto, algumas brincadeiras pelo meio (num filme que vemos a passar pelos nossos ouvidos terá sempre de haver alguns momentos de diversão, pois claro) e muito amor pela obra que se foi compondo ao longo de muito tempo. As Berlengas é um trabalho que marca a vida de quem o compôs. Aqueles que julgam que conquistar o que se sonhou é coisa fácil, estão bem enganados, e o sonho de compor uma banda sonora para um filme que nunca existiu foi-se, ao poucos, tornando real, imagem a imagem, som a som, até ao fim dos cerca de setenta e três minutos de tempo que lhe dão corpo e substância.
Todos os filmes, mesmo aqueles que nunca existiram, vivem de um imaginário próprio. Com as bandas sonoras desses mesmos (não) filmes, passa-se o mesmo. A chegada à ilha demora algum tempo. Há que perceber onde estamos, olhar em redor e entender a paisagem à nossa volta. É isso que sentimos ser bem capaz de existir através dos temas “As Berlengas (Parte 1)” e “Scally”. Depois, depois há que entender que cada ouvinte é sempre parte de um enredo em que é convidado a entrar, se assim o entender. E nós, que realizámos toda essa viagem com muito gosto e agrado, fomos bastante bem tratados. “Atrás da Barricada”, “Furado Grande”, “O Futuro Foi Cancelado”, “A Grande Libertação”, “A Rendição” e “Às Escuras”, por exemplo, são carícias que nos são dadas, e nós, educadamente, agradecemos seguindo em frente. Os mistérios e inquietações são muitos neste As Berlengas e estão à nossa espera. Parecemos crianças-adultas a percorrer a blytoniana Ilha de Kirrin das nossas infâncias, agora não já uma ilha, mas um arquipélago de nome bem português e ao nosso alcance. A ilha cresceu, podemos dizê-lo, assim como nós, assim como Benjamim. Benjamim já não é o mesmo. Perdeu o Walter de outros tempos e está a algumas léguas de distância de Auto Rádio, de 1986 ou de Vias de Extinção. As ilhas que fomos todos sendo, fizeram-se outras, diferentes, e nós também já não andamos de calções e limonadas frescas a tiracolo, antes de barba por fazer e de cabelo ralo em busca do imaginário que As Berlengas nos oferece. Não somos ilhas isoladas, mas partes de um todo partilhado.
Mas há mais. Há ainda momentos em que nos lançamos em perseguição de qualquer coisa que não sabemos bem o quê, o que só adensa o mistério e o prazer da caminhada. Percorremos o “Carreiro da Moxinga” até encontrarmos a “Cova do Sonho”, de onde se avistam (bastando para isso erguermos bem a cabeça e pormos a mão por cima dos olhos para que o sol não nos cegue) a “Pedra Negra” e o “Rochedo (Ilhéu Maldito)”, que se traduzem em electrónicas e ritmos por vezes inusitados, outras vezes cândidos e de uma pureza quase desarmante, para que o caminho não se torne corriqueiro e fácil. Aqui não há ramos verdes onde se pôr o pé. Isso era no tempo d’Os Pequenos Vagabundos do nosso passado de décadas. Agora somos todos adultos, que substituíram o prazer da errância pela laboriosa virtude da existência concreta. As Berlengas existem e As Berlengas também. Perceber a diferença entre uma coisa e outra é o melhor prazer mental que experimentámos nos últimos tempos. Abençoada viagem esta, por mares nunca de antes navegados, ao comando do skipper Benjamim!