Cinco anos depois do último álbum, o quinto disco de originais dos Capitão Fausto marca um ponto de viragem. A saída do teclista e membro fundador Francisco Ferreira obriga a banda a repensar o seu lugar e os trilhos que quer seguir. Fomos ter com eles a Alvalade, naturalmente, ao estúdio/sede da Cuca Monga, para uma conversa com Tomás Wallenstein, Domingos Ferreira, Manuel Palha e Salvador Seabra.
Este disco traz algumas mudanças, estéticas e sonoras, mas também líricas e temáticas. Principalmente depois da Invenção do Dia Claro, feito com cheiro a Brasil, neste álbum, voltaram à Europa continental?
Tomás: Ao Inverno da Europa.
Nem mais, Inverno. Porque este disco soa a conclusão, fechar um ciclo, fim de qualquer coisa?
Domingos: A ideia de despedida foi algo com que tivemos de aprender a conviver nos últimos anos e um dos vários desafios foi transformar essa ideia de despedida – da incerteza que existe em despedidas – em canções, em música.
Tomás: Há um elemento temático que é forte no disco e que nos acompanhou nos últimos anos, que é a saída do Francisco, «em que é que a banda se vai transformar? Como é que a banda sobrevive?», e acho que fomos descobrindo que isso acabou por ser quase o tema da coisa, o tema que depois se acaba por reflectir nas várias componentes da vida e nos vários episódios que nós fomos tendo, esta maneira de olhar para as coisas, o que é que vem depois, um virar de página, voltamos a reinventar, voltarmos a fazer um novo ponto de partida. E acho que isso, a partir do momento em que nós assumimos que essa era a realidade no meio da banda, foi também o que nos guiou a concluir o disco.
A saída do Francisco foi uma decisão amigável. Quando é que ele anunciou, e de que maneira é que isso deu forma ao disco que estavam a fazer?
Tomás: Já vai fazer dois anos que essa decisão foi tomada e nós temos vindo a conversar muito lentamente, muito progressivamente, sobre o assunto desde aí, e também a perceber de que forma é que nós íamos fazer isso, o próprio Francisco também nos fez a sugestão de querer continuar a fazer o disco – que já tínhamos começado entretanto – e portanto houve uma certa passagem de testemunho, uma transição muito progressiva, tivemos todos muito tempo para conversar uns com os outros, para digerir a ideia e para irmos percebendo o que é que acontecia a seguir.
Domingos: Sim, porque nenhum de nós sabia exactamente o que é que viria a seguir e, principalmente naquele período, ainda existiam muitas incertezas. Depois o que se deu a seguir ao anúncio da saída do Francisco, também coincide um bocado com a altura em que nós começámos a trabalhar mais nas várias ideias díspares com que estávamos na altura e se começou a desenhar mais aquilo que depois veio a ser a Subida Infinita.
O disco estaria se calhar a ir para um sítio e a partir desse anúncio passou a ir para outro?
Tomás: Não estava a ir para grande sítio.
Manuel: Nós estávamos ainda a delinear e eu acho que isto, apesar de em alguns pontos ter o sabor de ruptura, por outro lado mais misterioso também nos abriu um bocado as torrentes… bora fazer o disco então, bora acabar. Portanto foi assim essa coisa meio dual, de como lidar com aquilo. A única forma que soubemos era «bora, vamos continuar».
Domingos: O Manuel era o grande apologista, quando algumas vezes estávamos a bater com a cabeça na parede, o Manel era quem dizia «bora, bora, fazer o que nós sabemos fazer».
Tomás: Sim, acho que houve ali alguns momentos de dúvida, em que de facto a única solução mesmo era continuar aquilo que já estávamos a fazer, continuar a fazer o disco, continuar com os planos. Porque a dúvida era tanta, nós não sabíamos se com a saída do Francisco a banda acabava, se outros de nós iam querer sair, o que é que era o nosso futuro. Portanto a dúvida era tanta que se nós estivéssemos à espera de ter certezas, tinha parado tudo. Então a fórmula, justamente para descobrirmos qual era o percurso, era continuar a percorrê-lo mesmo.
E a participação do Francisco neste álbum foi normal, empenhada, não foi do género “vou sair, portanto estou-me a borrifar”?
Tomás: Não, foi ao contrário. E acho que isso também foi uma das coisas que acabou por correr muito bem e que, olhando para trás, fico contente que tenha acontecido assim, é que ao contrário de outras despedidas e de outras rupturas, é uma coisa que tem um fim anunciado portanto nós pudemos preparar-nos. Normalmente quando uma pessoa perde alguém próximo – nós também tivemos essa experiência com o Gastão [Reis, dos Zarco] – é uma coisa para a qual uma pessoa nunca se prepara. Claro que são coisas muito diferentes, nós estamos com o Francisco todos os dias, mas a metáfora aplica-se na mesma. E nós aqui conseguimos, muito tempo antes, começar a preparar, a imaginar, a interiorizar o que é que é aquela banda que daqui a dois anos já não vai ter esta pessoa, etc, e chegando aqui parece que já estamos a viver isso há mais tempo, essa parte correu muito bem.
Quando falavam das dúvidas que teriam, sobre o que seria da banda daí para a frente, já chegaram a alguma conclusão? Já sabem para onde querem ir ou ainda estão a digerir o disco que acabam de fazer?
Salvador: Ainda estamos a digerir. Nós já decidimos – no presente, não num futuro longínquo -, nós somos um quarteto e temos dois músicos que nos acompanham na estrada, mas no futuro, composição de um próximo disco, etc, eu pelo menos ainda não pensei muito sobre isso, acho que o tempo dirá como é que a coisa se vai transformar. Mas para já, temos as coisas bem definidas entre nós.
Já não sois os garotos de Gazela em 2011, já houve casamentos, filhos, etc. Neste disco fala-se frequentemente da passagem do tempo pelo corpo. Há essa tomada de consciência da idade, estamos a ficar velhos?
Tomás: Há. A ficar velhos não sei, a envelhecer com certeza.
Domingos: Velhos, mas não de espírito.
Tomás: Acho que existe uma reflexão – que eu acho que tem sido constante principalmente desde os Dias Contados, mas mesmo no Pesar o Sol já existia um bocadinho – e que acaba por ser uma constante geral, quando eu escrevo aparece mais ainda, que é sobre a passagem do tempo. A passagem do tempo é uma coisa que nos vai marcando, é inescapável, e às vezes ajuda-nos a encontrar um sítio e uma coisa sobre a qual falar, porque é uma coisa que está sempre a acontecer. Basta pararmos e pensarmos o que é que aconteceu um bocadinho para trás, o que é que vai acontecer para a frente e temos logo uma perspectiva e uma fotografia específica sobre a qual falar. E não se esgota, nós somos sempre a mesma pessoa mas a cada dia que passa vamo-nos transformando ligeiramente e eu acho que, tendo a consciência disso, também nos libertamos a nós próprios. Acho que musicalmente isso também aconteceu, libertarmo-nos a nós próprios a poder chegar a mais sítios se tivermos consciência que aos bocadinhos estamos sempre a mudar.
Domingos: E no caso destes anos, em que o tempo passou de uma forma muito específica, também foi uma parte do desafio, passar estes anos e a forma como nos marcaram, sintetizá-los em trinta minutos de música. E a verdade é que eles acabam por estar indissociáveis, estes anos, este período de tempo, as coisas por que passámos e estas canções especificamente. Mais do que noutros discos, eu vou olhar para este e ver muito mais o tempo dele.
Mas então não há o medo do tempo passar.
Tomás: A mim já me afligiu muito, mesmo nas coisas que fizemos com os Modernos, um sentimento de puerilidade, de querer ficar jovem. Mais do que ter medo de envelhecer, querer ficar jovem, de haver uma certa verdade, a verdade absoluta é ter esta idade e ser esta pessoa assim cristalizada ali. Eu acho que nesta fase já não tem a ver muito com temor – e neste disco é mais implícito – tem muito mais a ver com a aceitação do que tentar lutar contra e tentar evitar ou abrandar o tempo.
Domingos: Nem nós quereríamos algum dia esse tipo de saudosismo de tentarmos fazer alguma coisa como o Gazela ou como o Pesar o Sol, nesse lado de ir recuperar. Eu acho que o que acontece hoje em dia é que procuramos estar mais confortáveis com o sítio onde estamos.
Tomás: Mas há coisas em que se nota o envelhecimento, no nosso sistema estamos muito mais organizados, mais regrados, temos horários, coisas que se calhar há 10 anos nós não imaginávamos.
Domingos: Há 10 anos ensaiávamos à noite e ficávamos a dormir no estúdio para não ir para casa dos pais, essas coisas assim.
Tomás: Coisas que aparecem e que são próprias da idade e que se ganha com alguma maturidade e ainda bem que também acaba por se ganhar e que acabam por marcar também a passagem do tempo em nós. Mas neste disco, também gosto de destacar que houve… ainda há momentos muito parecidos com o que houve para fazer o primeiro disco. Ainda há. É evidente que aquele primeiro entusiasmo da primeira experiência nunca volta, porque é tudo novo e a partir do momento em que as coisas deixam de ser novidade, metade das coisas desaparece, aquela pureza toda é a única. Mas ainda conseguimos ter momentos de grande entusiasmo, momentos de grande fascínio com as coisas que estamos a fazer. E eu acho que isso é desejável é uma coisa que nós vamos continuar a procurar e que é bom.
Por que é que o disco é tão curto? São 10 músicas, meia hora, e quando o disco saiu já conhecíamos 4 singles.
Tomás: Esse é o formato a que temos habituado as pessoas.
Domingos: Este álbum tem o mesmo tempo exato que os Dias Contados, 32 minutos e 6 segundos. Mas é a apologia de ser sucinto. Tem as suas vantagens.
Tomás: Neste disco também quisemos, e foi uma forma de trabalhar também teve a ver com a maneira como nós fomos acabando aquilo que já tínhamos em mãos e etc, mas também tomámos esta decisão de o disco ser uma coisa em construção, da mesma forma que a própria ideia da Subida Infinita é, esta ideia de não ser sobre o destino, mas sim sobre percorrer o percurso. E também esta ideia de estarmos a caminhar para a saída do Francisco, sabendo que ela vai acontecer, mas temos toda uma construção até esse momento chegar, e dessa forma também acabaram por sair as músicas, irmos mostrando o disco aos bocadinhos. É um disco que se vai construindo e que depois… mesmo eu conheço bem o disco, no dia em que ele saiu eu percebi que saiu pouca música nova – saíram 4 ou 5 – mas mas que deram a forma toda ao disco, que ele não tinha ainda. A ordem, alterou-se, percebe-se como é que ele começa, como é que ele acaba…
Domingos: E eu, talvez seja uma coisa da idade, mas tenho vindo a ganhar um gosto por limites, ou seja, um limite de 30 minutos num álbum ou o formato de uma canção, é um limite, mas que na verdade oferece uma infinitude de possibilidades, ou seja, numa música em dois minutos e meio podem caber todas as referências que se andaram a ouvir durante 5 anos. E nesse sentido, eu acho que o nosso caldeirão para este disco passou por muitas coisas só que elas foram, no fundo, afuniladas àqueles 30 minutos de música e eu vejo isso como uma com um ponto a favor.
Faz com que o produto seja aprimorado ao máximo?
Tomás: Nós apercebemo-nos que neste disco que nós tivemos ideias, muitas ideias no início e resolvemos armazenar o máximo de ideias possível e foi, sem dúvida, dos nossos discos, aquele que nós mais ideias deixámos para trás. E mesmo dentro de músicas, as músicas que foram mais escrutinadas e partes retiradas e rearranjadas até sentirmos que estávamos os cinco confortáveis num sítio onde aquela música existe exactamente assim, nem com mais um bocadinho. Tentar cortar as gorduras.
Domingos: Os segundos são bastante negociados neste projeto. [risos]
Como foi a composição das músicas, veio primeiro a melodia ou a letra?
Domingos: A letra desta vez veio mais cedo no processo, mas veio tarde na mesma.
Tomás: O desenho geral foi uma combinação de rascunhos de uma ou duas ou três partes musicais juntas, que não tinham nem princípio nem fim, e depois a partir disso, começou-se a construir as coisas e as letras foram entrando e depois a seguir às letras, às melodias e termos uma melodia principal, a estrutura da canção, as partes que saem, e então aí um último arranjo entre todos, a voz outra vez a adaptar-se.
O título do disco, Subida Infinita, consegue ser uma coisa meio divina, que vai para além do humano, pode ter inúmeras interpretações. Qual é a vossa?
Tomás: A Subida Infinita, originalmente, é uma peça – que aparece também no disco – que é uma orquestração, uma coisa, um quarteto de cordas que Manuel tinha escrito há alguns tempos e que depois nós, a dada altura, ainda andámos a tocar juntos quando fizemos um concerto com a orquestra, com o Martim Sousa Tavares. Portanto essa coisa sugestionou-nos um título, porque aquilo na verdade chamava-se subida infinita porque é uma coisa muito técnica, uma coisa melódica que está sempre a subir, e acho que até foi o Domingos que às tantas começou a falar nisto, que gostava do nome e que achava que podia vir a representar um bocadinho o que era este disco.
Domingos: Era bastante sugestivo.
Tomás: É sugestivo e tem muitas interpretações e há muitos pontos por onde se pega que fazem sentido para este momento. Esta ideia de estar sempre a subir ligeiramente, de ser uma subida, uma pessoa está cansada mas não há nenhum ponto em que vai descer, tem sempre que fazer um esforço para continuar a dar um passo. A ideia da ascensão aos céus… talvez, nunca tinha pensado nisso. Mas também foi uma fase em que lidámos com a morte, com a partida, com o inexistente, e com a metafísica faz imenso sentido. O facto de também haver uma simbologia à volta da Serra da Estrela com o disco, a ideia da montanha, da encosta, do ermo. Portanto, acho que acho que o que nos agradou mais no título é o facto de ele não ser muito estanque e de justamente nós próprios… ainda hoje, agora a conversar contigo estou a descobrir novos significados para que fazem sentido com este disco.
Domingos: Mas uma coisa é certa, foi a primeira vez em que tivemos o nome de álbum tão cedo, porque muitas vezes nós já tínhamos uns nomes de álbum código só que havia votações para ver qual era o nome do álbum e aqui foi bastante consensual entre todos, que isto era um nome forte. A certa altura já nem vimos isto de outra forma, era Subida Infinita estava, estava decidido, portanto, honra feita ao Manuel e ao nome que deu ao seu projeto.
Vocês agora estão em tour por cine-teatros. Há espaço para tocar canções como “Teresa” ou “Raposa” ou já não vão aí?
Domingos: Temos feito um tributo ao Gazela através da “Santana”, está uma versão bem robusta.
Tomás: Eu acho que há espaço para as músicas do passado, mas o concerto está desenhado, toda esta primeira parte da digressão é sempre lugares sentados, portanto, tendo em conta que é para os teatros, é mais esse o critério do que propriamente ser as canções mais antigas. É mais natural encontrarmos mais afinidade com algumas músicas dos Dias Contados do que com algumas do Gazela, mas acho que o critério principal é sempre o contexto do concerto.
Manuel: Nós agora também estamos na fase de descobrir, com a com a nova formação ao vivo também nos dá mais timbres e mais paletes de cor para para experimentar e, portanto, agora estamos no início, delineamos este concerto, mas vamos começar a alargar ligeiramente.
Portanto não há o risco de vocês agora se tornarem chatos e só tocarem para lugares sentados e tocarem as músicas do Gazela e Pesar o Sol, mas 3 tempos abaixo.
Domingos: Não me parece, não estamos nada aí. Aliás, fazer os 10 anos do Gazela deu-nos uma pica! Nós tocamos aquilo quase 95% igualzinho a mesma velocidade, tudo, tivemos mesmo atenção a isso tipo e eu, se por um lado gosto das bandas que depois fazem novos arranjos às músicas, eu também gosto às vezes de ver um concerto e perceber que há ali um respeito pelo pelas coisas que se fez, porque é muito comum – e a nós também nos acontece – ficarmos cansados da repetição. E há um grande desafio deste trabalho que é aprender a conviver com a repetição. A “Teresa” já devemos ter tocado sei lá quantas milhares de vezes, portanto há sempre essa gestão de esforços, mas também há uma tentativa da nossa parte de respeitar, para já os fãs que também procuram essas canções, e também qual é a melhor maneira de conseguir incluir essas canções em concertos adaptados aos novos álbuns que normalmente é aquilo mais fresco nós levamos, mas temos sempre esse cuidado de tentar dar um aperto de mão aos vários percursos, às várias fases da discografia.