
O Reverence Valada não é um qualquer festival de verão. É algo muito mais parecido com uma experiência multi-musical, um verdadeiro estudo de caso sobre as subculturas mais ‘underground’ da nossa sociedade, todas concentradas na capital do rock psicadélico – o Cartaxo. Um festival de música, com um carimbo de dedicação plenamente devoto de Nick Alport, que viu assim evoluir o seu conceito de Cartaxo Sessions para um outro nível. Se, no ano passado, numa terriola ali ao lado – de nome Valada – se concretizou o sonho do festival, nesta segunda edição o Reverence afirmou-se como tal.
Em terras ribatejanas, durante três dias, viveu-se o rock: sem vergonhas, mas com muita vontade. O cartaz chamava logo no primeiro dos três dias com os americanos Jeff The Brotherhood ou os portugueses Keep Razors Sharp, mas alguns dos mais entusiastas tiveram mesmo de guardar as energias para o fim-de-semana.
Sexta-feira, enquanto alguns festivaleiros recuperavam da noite anterior, ainda pelo terreno seco e árido do campismo, muitos outros se começavam a mobilizar para o concerto de Stoned Jesus, marcado para as 16h50. Os seus antecessores do Palco Rio, os Dead Mantra, actuaram para uma plateia sentada nas sombras do festival, tentando equilibrar a temperatura corpórea com cerveja. Pelo contrário, os ucranianos Stoned Jesus – que confessaram nunca ter ido tão longe em tour – tiraram os espectadores dos seus lugares, posicionando-os estrategicamente numa plateia cada vez mais desprovida de sombra. Trouxeram o seu mais recente álbum, The Harvest, o mais pesado até então, e apresentaram-no com rigor, destacando aos fãs o tema “Youth For Sale”. Se a pergunta for porquê, a resposta está na letra. O trio tocou ainda registos dos seus outros dois álbuns, criando um clima de ansiedade por “I’m The Mountain”, um dos temas mais fulcrais da sua discografia, terminando com uma cover de “One Arm Scissored”, original de At The Drive In. Depois da despedida, mais uma procissão para os concertos que seguiam. No Reverence não há oferta de brindes, não há marcas (as únicas a serem faladas são mesmo Sagres e Super Bock) e as pessoas cumprem o programa, seguindo de concerto em concerto. Afinal de contas, é possível ver, pelo menos, vinte minutos de cada actuação.
A noite continuava com os italianos Black Rainbows, com quem tivemos a oportunidade de falar entre concertos, e com os seus compatriotas Uffomammut, que cumpriram a prece de providenciar os visuais necessários – e em falta na maioria do festival – aos que não se limitavam a escutar a sua música. Tal como os seus antecessores, traziam um som mais pesado, mais carregado, doom metal stoner, o que lhe quiserem chamar. Mas no palco vizinho já se começava a dançar o rock’n’roll: o trio incendiário Jon Spencer Blues Explosions tomava conta das hostilidades no palco Reverence. Directamente de Nova Iorque para Valada e nascidos no mesmo ano do que eu, vieram completar o leque de géneros e subgéneros musicais do festival. Nas suas influências contam-se o punk, os blues e o rockabilly, e todas elas se fundiram na poeirenta pista de dança. Mas antes do pó assentar, já os Sleep satisfaziam os seus ansiosos fãs (e os do festival), que ali estavam para ouvir o prometido stoner rock. Duro, cru, lento e sobretudo violento. Mas bom, aliciante. Todos conhecemos o efeito de “Dopesmoker” ou “Dragonaut”.
Ainda sobre esta noite, uma nota para os Blue Drones: os putos do Cacém que tocam rock com a mesma garra dos gajos de antigamente. Um registo calmo a fazer lembrar Doors ou Lou Reed, de quem nós já temos tanta saudade. “Oh, such a perfect day”, diria eu nas palavras dele.
No terceiro dia de festival, o sol queimava mais do que no dia anterior e a sobreposição de dias já se fazia notar nos rostos cansados entre o acampamento e a margem do rio, onde as sopas e bifanas serviam de conforto aos que por ali já recolhiam energias para o último dia. Outros provavam o porco vendido no recinto, aproveitando para espreitar as primeiras bandas na sombra mais próxima; mas o primeiro nome a encher plateias não podia deixar de ser o dos fervorosos Samsara Blues Experiment. Rock alemão degustado numa tarde de verão rigoroso, em comunhão com os raios quentes e a neblina invisível de pó que ia camuflando subtilmente o ambiente de transe que se ia entranhando nos transeuntes. Mas especialmente nos que vieram para ficar, para ouvir o mestre Christian Peters e os seus colegas de profissão Thomas Vedder, na bateria, e Hans Eiselt, agora mudado das guitarras para o baixo. um power trio de fazer chorar por mais e mais riffs, em músicas mais ou menos longas. Criada a mística certa, ao som de “Singata Mistyc Queen” ou “Center Of The Sun”, o efeito era igual para todos. Mas a dose de psicadelia fazia tenções de aumentar. O espacialismo impunha-se à medida em que a lua se ia servindo do nosso céu como poiso, permanecendo imperpetrável no retrato traseiro do festival. De frente para os palcos, o público mirava atento os concertos, mas o lugar da lua era cativo e ela propunha-se a observá-los também.
Pelas oito e meia da noite, a segunda amostra de Brian Jonestown Massacre deu à costa no palco Reverence: Joel Gion (and Guests), com um registo mais leve e mais mexido, trazia consigo o seu novo álbum a solo, lançado no ano passado, onde contou com a co-produção dos seus colegas de banda na banda. A primeira dose tinha sido com Miranda Lee Richards, as 17h30, no Palco Praia, mas os seus convidados foram mesmo alguns dos seus bandmates. Mas, no mesmo palco onde Joel Gion encantou com o seu rock enérgico e explorador, iam ainda tocar Sean Riley and The Slowriders, banda portuguesa que partilha o seu vocalista com os Keep Razors Sharp – também eles presentes no primeiríssimo dia do festival – e que tocou no Reverence já partes de um novo álbum que veio marcar a mudança depois de uma ausência de três anos; Amon Düül II, o grupo (agora já com apenas alguns membros reunidos) que conta com uma história bem mais elaborada do que qualquer outra deste line-up. De uma comuna político-artista alemã conhecida pela sua liberdade musical em termos de improvisações, nasceram, nos anos 60, duas bandas de rock psicadélico, Amon Düül I e Amon Düül II, a banda ainda hoje se reúne para hipnotizar espectadores sedentos de viagens musicais; e ainda, no mesmo palco, The Horrors, banda que, nos últimos dez anos, andou a rodar estilos musicais, transitando entre o garage, o shoegaze e até o pop, mais ouvido no seu último álbum Luminous, também ele ouvido pelos temporários habitantes daquele espaço em Valada. Mas, como o dia de concertos fazia questão de não acabar, e ainda bem, o cartaz permitia aos mais resistentes viajar com os italianos Calibro 35 ou os alemães Electric Moon, impecáveis na sua tarefa de guiar as lides do espacialismo e do rock psicadélico do festival. O percurso foi longo, mas a aprendizagem musical compensou. No Reverence, quem vai só para ver a banda X e Y, acaba a ver quase todas as letras do abecedário que correspondem às bandas do festival. Debaixo da mesma lua, apadrinhada nessa última noite pelos próprios Electric Moon, despedimo-nos do festival, que tão bem nos acolheu naquele ambiente seco e acolhedor. Que contes muitos, Reverence Valada.