Há pessoas que, movidas por paixão, semeiam nas mais férteis terras. Residente no Cartaxo há 5 anos, Nick Allport, produtor inglês mentor do Reverence e do Cartaxo Sessions, tem-nos vindo a habituar às mais inesquecíveis noites de êxodo urbano. O barulho do caos citadino foi substituído por ruídos de guitarras reverberadas e distorcidas pelo Fuzz irrequieto de bandas renegadas pela capital. Telescopes, The Oscilation, Psychic TV, Holy Wave, A Place to Bury Strangers, Wooden Shjips e muitos mais já tocaram no centro cultural do Cartaxo. Terra conhecida por ser fetiche de bons apreciadores de vinho, tem vindo a começar a ganhar notoriedade no âmbito da música alternativa. Nick, para além de ter encontrado no Cartaxo a tranquilidade e o ambiente certo para viver, deparou-se com uma terra ideal para explorar o seu verdadeiro enamoramento: a música. Assim nasceram as Cartaxo Sessions. Aquelas psicadélicas e ruidosas noites mistificaram tais sessões.
Mas foi com o Reverence que esta planta carnívora tomou proporções europeias. Esta primeira edição com tão robusto cartaz, tanto a nível nacional como internacional, atraiu o público nacional e estrangeiro. Além disso, ao contrário de muitos festivais, a agorafobia era inexistente. O recinto, fácil e espaçoso, deu para acolher uma multidão considerável. Tal multidão que, apesar de viver nesta década, mostrava ter o coração, a vestimenta (e ouvidos) em décadas passadas.
Ao entrarmos no recinto éramos capazes de ouvir do palco Sabotage os Kilimanjaro a soltarem o riff cru de Damselfly e as harmonias cavalgadas ao estilo da New Wave of British Heavy Metal em Seventeen. O peso para aquelas horas pós almoço, ditavam um sol mais pesado do que o comum. Mas o público não estava indiferente ao que via e ouvia do trio português.
No palco rio, Asteroid #4 captavam a atenção de quem por ali passava. A banda Californiana foi capaz de ser um hibrido interessante de psicadélico, krautrock e noise rock, chegando a ser um folk pedrado dominado por cordas e na monotonia dinamizada pela intensidade. Se o público começou o concerto sentado, quase no fim poucos foram aqueles que não resistiram a levantar-se. Com I Wanna Touch You a merecer uma forte ovação, eles desabafaram que a «California é Portugal dos Estados Unidos da América». A linha da frente que mostrava ser a mais frenética berrava timidamente «we want more».
Ainda não se fazia tarde e, enquanto averiguávamos na feira das almas os vinis e as humildes alpercatas Innula com padrões psych, o peso das guitarras e as frequências do duplo pedal no bombo atraia-nos para o poder dos Bombus no palco Sabotage. Este quarteto sueco animou o dia dos inúmeros metalheads que exibiam suas agigantadas barbas, vastas t-shirts e tatuagens de Motörhead e Machine Head. Com uma Gibson Flying V, Fefe encarnou com a voz de Lemmy e com as harmonias épicas de guitarra de Robert Flynn em A Safe Passage. Não faltou a componente doom metal, como na canção Into the Fire, que valeu ao público, sereno mas atento, uns valentes headbangs.
Nem valeu a pena sair do palco Sabotage com Sunflare à vista. Com um sample mecânico a repetir «They should legalize drugs (so you can hurry up and fucking die)», da canção homónima da banda punk Charles Bronson, de forma hipnótica, os Sunflare apresentaram um ataque sónico aos instrumentos. As guitarras mergulhadas em fuzz e em delay acompanharam um público algo distante e sentado. Apesar de tudo, alguns momentos exibiam o talento inato deste trio.
Foram as harmonias bonitas dos Sleepy Sun que despertaram o público meio disperso do festival. Até à altura, o chão e a cerveja serviam de companhia para a maior parte dos concertos. Mas bastou a chegada da «Sandstorm Woman» arrancar do conforto as pessoas que se iam multiplicando na plateia. Em Inglaterra os concertos começam tão cedo como no Reverence, mas por Portugal acaba-se sempre a horas tardias. E foi o som fluido e descontraído dos Sleepy Sun que cativou os corpos de uma audiência que sabia que ainda se iria batalhar com longas horas de concertos. E muitos sabiam para o que vinham: um bom concerto de rock psicadélico com travo a stoner, adequado a uma tarde quente que se reservou ali especialmente para a ocasião. Em Valada não houve nem aguaceiros nem trovoadas.

Acabados de chegar de um concerto em Lisboa, após terem completado a tarefa de aquecer as hostes para o warm-up do festival no sabotage club, os Ringo Deathstarr apresentam um espectáculo muito semelhante ao do dia anterior. Mais tímidos e com o som mais disperso por estarem a tocar ao ar livre, não abdicaram dos clássicos In Love e Imagine. Focaram-se no mais recente EP, God’s Dream, fazendo da canção Flower Power um dos pontos altos da noite, devido ao teor progressivo da transição da guitarra grunge para um reverb sereno e cósmico. Ao contrário do concerto no Sabotage Club, tocaram a High, aclamado tema do grupo, que impõe um twee saltitante e agressivamente doce. O shoegaze dos Ringo Deathstarr não funcionou ao ar livre e a energia que as canções prometiam não chegaram a quem os ouvia, apenas aos que já conheciam a identidade da banda.
Woods estava perfeitamente colocado no cartaz. Um final de tarde, sentado, a ouvir um folk melódico, sereno e orgânico acompanhado por uma refrescante cerveja ou gin tónico e um relaxante cigarro, absorvendo os últimos raios solares do dia que já pesavam. Pôde ser comprovada na crítica do Altamont ao novo álbum dos Woods que professa uma maturidade melódica mais afincada neste novo trabalho. Apesar de não estar cheio, provavelmente devido ao facto de esta ser a última oportunidade para jantar antes do palco Reverence abrir, quem por lá relaxou e apreciou os arranjos sonhadores dos woods não se arrependeu. Até teve direito a diversas jams com momentos mais agressivos, mas sem perder o rumo àquele folk de guitarra e voz fácil de digestão. O hit do novo disco, Moving to the Left, foi dançado e reconhecido, fechando o palco Sabotage para abrir oficialmente o tão desejado palco Reverence.

20h. A noite começa a intoxicar a Valada do Ribatejo. O céu nublado esconde a lua que ameaça vaidade. Alguns aproveitam o intervalo mínimo para ir buscar uma bifana, porco no espeto ou, para quem preferir, vegetais grelhados. 20h11 ditou o primeiro acorde distorcido dos Wytches, que tiveram a responsabilidade de abrir o palco Reverence. A força da canção Wire Frame Mattress, atordoada por um baixo directo e distorcido pintado por uma guitarra trovada por escalas harmônicas menores, proporcionou o primeiro ponto alto do concerto. O doom cósmico de Crying Clown fechou o espectáculo. A voz rouca de Kristian Bell e a postura agressiva do trio britânico aqueceu e elevou a fasquia daquilo que foi um dos melhores palcos do ano.
21h. Era a vez de Sweverdriver continuar este ímpeto sonoro. Ao abrirem com Last Train to Satansville, a frase «You see, my baby is gone away too long» foi timidamente entoada pela linha da frente que energeticamente acompanhavam o saltitante e nostálgico indie rock deste quarteto britânico. O britpop agressivo destas canções, apear de distante para alguns, foi bem acolhido e respondido com uma valente salva de palmas em Rave Down, que fechou o set e se tornou um dos pontos altos do concerto.
No primeiro mês do ano, alguns bons fãs de Red Fang ficaram à porta do Musicbox depois de uma frustrada corrida aos bilhetes. Mas um bom concerto é sempre um bom presságio, e a presença no Reverence Valada foi a confirmação do premeditado. Perto das dez da noite, o grupo norte-americano subiu ao maior palco do festival para nos deliciar com uma dose de destruição semelhante à dos videoclips. Talvez não literalmente, se tivermos presente que são realizados pelo realizador de Jackass: O Filme. Mas foi suficiente para abrir o primeiro mosh a sério do festival (pelo menos que eu tivesse dado conta até à altura) e era fácil perceber porquê. Traziam sonoridades pesadas e agressivas, quase a apelar ao motim (com uma “No Hope”a servir de exemplo vivo), e nas linhas de guitarra cravavam uma aceleração que não abrandava nem nas partes mais calmas. “Pre-historic Dog” e “Wires” foram êxtases de um concerto sem tempo para pausas e tenho a certeza que Valada tenha sido um palco melhor do que um Musicbox lotado.

As nuvens deixavam a vaidosa lua semi-nua. Algo estava a acontecer nesta noite de Verão. Graveyard, às 23h05, cantava «Blue is the color of my soul» em Blue song, dando a entender que daquele quarteto sueco só podíamos esperar uns blues negro misturado com um andamento stoner e uma imperial voz que assombrou qualquer um que por ali esperava apenas ver um concerto. Hisingen Blues mereceu os habituais moshes e os crowd surfing de um público claramente entusiasmado com aquela experiência ribatejana. Uncomfortably Numb, canção docilmente lenta mas dinâmica, teve direito à Jam da noite: uma autêntica batalha entre guitarras e, uma talentosa, voz.
12h18. Finalmente, o céu já tinha despido uma lua cheia que não quis perder uns imponentes Electric Wizard. A sombria Supercoven, canção influenciada pelo imaginário de H.P Lovecraft, foi das primeiras a serem ouvidas. Este tema foi o verdadeiro feitiço luciferiano numa audiência petrificada pelo negrume destes feiticeiros, quase como se Cthulhu tivesse tomado posse das pobres e frágeis almas mortais da Valada. «We want your blood!» berrou Jus Oborn, atirando uma Vinnum Sabbathi, preparando ao luar os ingredientes deste ritual sonoro, em pleno inicio de Sábado, dia santamente invertido. «Come fanatics, come to the Sabbath» fez o public prever uma Withcult Today, que foi aclamada com os cânticos entusiasmados do público à linha «Our cult grows». O headbang ao som do Hyper Fuzz da guitarra, do riff do baixo e do splash da bateria acompanhou esta majestosa Missa Negra. Sim, Missa Negra. Black Mass desmascarou o profano feitiço lunar inerente nestas canções e na ambiência do fog que os fumadores de erva emanavam. A influência Black Metal, a postura Doom e o som lentamente pesado afirmou-se em Dopethrone e com uma poderosa Funeralopolis que fechou o mágico feitiço destes feiticeiros. Apesar de chover na capital, o abençoado Cartaxo, protegido por uma aura sobrenatural, não teve qualquer aparição de chuva. A única coisa que choveu e nos molhou, pelo resto da noite, foram as réstias da cevada que foram atiradas ao ar e o viciante riff de Funeralopolis.

Em tempos, Nick Allport – mentor e organizador do festival que elogiamos aqui – foi manager dos The Telescopes. E foram eles a inaugurar as Cartaxo Sessions, em 2012. Por isso, a chamada para Stephen Lawrie não deverá ter tardado durante a escolha dos representantes da primeira edição do Reverence Valada. Com uma formação diferente da que apresentaram na sua estreia no Cartaxo, os The Telescopes tomaram conta das mentes do que se entregaram ao Palco Rio pelas 3h da manhã. Deixaram para trás as memórias dos primeiros álbuns para partirem numa viagem pela escuridão drone e distorcida das guitarras. De um lado os riffs sem direcção, do outro um baixo decidido. E, por cima de tudo isto, uma voz rasgada, propagada por toda a extensão de resistentes do festival. A noite fazia-se longa e os The Telescopes vieram para a prolongar.
Com a viagem ao espaço dos Telescopes, só ficou a vontade de ficar. E assim, sabendo que vinha daí Black Bombaim, era impossível ir já para casa. O trio de Barcelos fez esquecer as 5 da manhã que se sentiam, para expelir um instrumental espacial e solista num sábado que parecia começar. O resto que havia, Black Bombaim tirou tudo para nos retribuir com o que sabe fazer de melhor: música ritmicamente dinâmica, embriagada de mixórdias sonoras e roqueiras. Nós sabíamos, eles nunca nos deixam mal.
O formato britânico de horário (de manhã até madrugada fora, non-stop) foi um desafio para o qualquer um habituado à sua pausa. Mas, apesar da falta de energias e com alguns copos em cima, as pessoas, o ambiente e a música deixaram-nos o pressentimento de estar a presenciar um dos pontos mais altos da história dos festivais portugueses. História estava a ser feita e nós estávamos a ter a honra de lá estar.
Textos: Alexandre R. Malhado e Joana Canela
Fotos: Francisco Fidalgo
Vídeo: Pedro Ponte