
Não existiu segundo dia neste festival. Chamemos-lhe outra coisa. Porque, ao entrarmos no Parque das Merendas para um segundo episódio de Reverence, sentia-se apenas uma extensão do primeiro dia. Estar ali era redefinir a concepção de dia em 48 horas: menos anos de vida, mas mais vida nos menos anos de vida. Neste segundo capítulo de Valada estavam nuvens que ameaçavam chuva, um ambiente mais negro e mais gente para viver um festival que estava a ser histórico. Os concertos atrasaram-se e, por isso, esperávamos uma noite ainda mais madrugadora pela frente.
Com os concertos a tardarem pela tarde fora, os Bardo Pond só chegaram ao Palco Rio depois das seis da tarde. Enquanto os intervalos e os soundcheck serviam de pausa para a cerveja, o grupo norte-americano foi servido como um aperitivo da noite. Daqueles gourmet, que enchem a barriga. Com mais de vinte anos de psicadelismo, os Bardo Pond combinam as formas do rock na sua própria versão cósmica da música. Se no festival Amplifest de 2011 tiveram direito a um set prolongado, no Reverence ficaram com o tempo de antena reduzido a pouco mais de meia hora, mas chegou para encantar com temas como Kali Yuga Blues ou Limerick. Aguarda-se uma refeição completa para breve. E de preferência para mais perto, se a fome não apertar entretanto.

«Olha, é o gajo dos Black Angels!» – dizia alguém estupefacto no recinto Rio. Christian Bland, guitarrista nos Black Angels, e os seus virtuosos Revelators, proporcionaram alguns dos melhores momentos deste festival com o seu novo trabalho, The Unseen Green Obscene. Dono de uma psicadélia mais cavalgante e saltitante, também houve tempo para uma majestosa e cósmica versão de Astronomy Domine dos Pink Floyd, um apogeu de Syd Barrett nos Pink Floyd.
Com os palcos secundários ainda por pararem, devido aos atrasos, o esperado e quase pontual palco Reverence abriu novamente os olhos dormentes com um dos momentos de todo o festival: A Place to Bury Strangers. Ao ouvirmos os primeiros segundos de Deadbeat, dotada de um riff que poderia ser a banda sonora de um western-zombie-gótico, éramos instantaneamente levados à boleia para um palco Reverence ainda a compor-se. O post-punk deste trio americano foi uma autêntica lufada de ar fresco no meio de um cartaz cheio de tiques e sonoridades que, apesar de boas, eram semelhantes. Dead Moon Night, canção dos Dead Moon, desmascarou um punk gutural e noise que iria ser a divisa da noite. Em Alone e You Are the One a constante bateria maquinal roubou da audiência libertina e entusiasta passos de dança epilepticos e balanceados. Ali reviveu-se um 24 hour party people, documentário sobre os anos de ouro da Factory Records e da cena de Madchester. Irreverentes, hiperactivos e famintos por aumentar o volumes dos instrumentos, pegaram nos amplificadores e, enquanto tocavam I Live My Life To Stand in the Shadow of Your Heart, colocaram tais aparelhos bem perto do público, criando uma parede sonora na explosão da canção. Porque não ousar e usar a expressão «partir a louça toda»? Neste caso as guitarras. Porque, sem pudor algum, Oliver Ackermann arremessa a sua guitarra até partir. Dion Ludanon segue o mesmo exemplo mas sem partir o baixo. A Place to Bury Strangers entrou em combustão e incendiou o palco, metaforicamente, em chamas negras e tapando o que restava de luz naquele último dia de festival. Ocean, hino a qualquer revivalismo do post-punk, pôs o ponto final àquilo que foi um dos melhores concertos do festival. Atrevo-me a hiperbolizar: dos melhores concertos do ano.

21h06. «Hello, we are Psychic TV» – diziam um grupo ancião e místico que já conhece bem o cartaxo. O palco, ainda atordoado por um acordar repentino e agressivo, estava preparado para um ritual de destruição feito por pseudo-hermafroditas e programadores de uma cósmica e viajante programação de televisão. Genesis P-Orridge, dotado de uns passos de dança aluados e lunáticos, tocava notas soltas num violino. Movendo os braços no ar aos sons do ataque da guitarra, começaram a emissão com uma mística homenagem à Interstellar Overdrive dos Pink Floyd. Segunda versão do The Piper at the Gates of Dawn no festival, álbum de 1967 mas que se revela estar bem vivo em 2014. A postura dramática acompanhada com a reconhecida faceta espacial e psicadélica foi a mais vincada entre todas as vertentes já existentes da banda, como o industrial. As hipnóticas guitarras, que mais pareciam citaras, quase que nos tentavam induzir num brainwash de frases e ideias: um apocalíptico «Nothing matters but the end of matter» ou um «memory tell us one thing, this thing must go» foram frases murmuradas e repetidas de Greyhounds of the Future. A emissão terminou tal e qual como se de uma televisão se tratasse: «this concludes our service». Em que realidade estamos? O que estamos a fazer com a nossa vida? Era impossível ficar indiferente.
22H49. Apesar de atrasados, os clássicos Hawkwind eram dos mais esperados da noite. E quem esperou para assistir a um nome de peso, constituído por um grupo de velhotes, iriam compreender que entrar na nave especial do rock ‘n’ rol e subjugar-se à aventura que álbuns como o Space Ritual ou Onward proporcionam é ideal para qualquer idade. Apesar de não serem monstros de palco foram capazes de encher as medidas a uma audiência já conquistada por uma vida de sucesso. Não faltaram canções como Prometheus, The Golden Void ou Sonic Attack, dominadas pelo clássico space rock psicadélico e pelo pouco usual uso do Theremin, instrumento ideal para um verdadeiro viajante lunar. Mesmo sem tocar clássicos como Silver Machine ou Levitation, um dia poderemos dizer: eu já vi um concerto de Hawkwind.
Já passava da meia-noite e ouvíamos o Closer de Nine Inch Nails no sistema de som do palco Reverence. O refrão, entoado sem timidez entre as massas, iria prever um palpitar ansioso por uns gloriosos Mão Morta. Bastou ouvirmos os primeiros acordes de Até Cair para percebermos que o palco Reverence lhes assentava na perfeição. O murmúrio lírico e o olhar maníaco do Adolfo Luxúria Canibal emaranhado numa guitarra cheio de transtorno de personalidade, que ameaça uma progressão de acordes feliz mas que acaba sempre por deixar um acorde a discordar do resto, resgataram à Valada clássicos como E Se Depois ou Berlim. «Vamos todos aparecer na TV. De cocktails na mão!» berrava em Charles Manson que mereceram coros e protestos por pessoas famintas por um volume de microfone mais alto. «Vamos lá ver se isto fica mais alto» incentivou Adolfo. O novo, sério e bem conseguido álbum, Pelo Meu Relógio São Horas de Matar, foi a prova que os Mão Morta não conseguem ficar datados, mesmo com o peso do magnum opus Mutantes S.21. A intensidade deste último trabalho ficou vincada em Irmãos da Solidão, Hipótese de Suicídio, Pássaros a esvoaçar e, um dos momentos altos da noite, Pelo Meu Relógio São Horas de Matar. O Vilão-Herói nacional Adolfo elevou bem alto a prestação ao não se esquecer do Anarquista Duval, que deu vida a um festival que também vive de negrume. Só um palco principal cabia para uns Mão Morta colossais. Assim acabou um dos melhores concertos do festival.
Criadores do Austin Psych Fest e mentores de um grande grupo de rock que se diz psicadélico, os Black Angels viram no Palco Reverence a sua primeira casa portuguesa. Deram-se por conhecidos na banda sonora de umas quantas séries e foi assim que começaram a saltar de ouvido em ouvido e de palco em palco até criarem o seu. Merecedores de um lugar (não demasiado) tardio no palco principal do festival, os Black Angels tiveram ao seu dispor um set mais longo do que muitos dos grupos convidados, e vingaram-no com um alinhamento continuamente alimentado por malhas de todos os álbuns. “Snake In The Grass”, do não-tão-difícil segundo álbum, arrancou a um ritmo vagaroso e intenso, preparado para ser descompensado com “Bad Vibrations” provindas de um mais recente “Phosphene Dream”. Não falharam com “Black Grease”, mas foi com “Indigo Meadow”, faixa homónima do último álbum, que provaram o estatuto que os levou do Austin Psych Fest até Valada com a missão de nos roubar a sobriedade.

Crippled Black Phoenix. Justin Greaves, antigo baterista de Electric Wizard? Daniel Änghede de Hearts of Black Science? Daisy Chapman? O Dominic Aitchison dos Mogwai já tocou nesta banda? Não, a fome podia esperar. Era altura de ver um supergrupo criar uma miscelânea sonora entre stoner, post rock e blues para revigorar-nos de um cansaço que já pesava. Rise Up and Fight mexeu com um público entusiasmado mas cansado que ouviu «You’re as polite as the english crowd». O público reagiu contraditoriamente com o coro épico e palmas de Burnt Reynolds: estava criado o maior ajuntamento de oh’s do Reverence. Ainda com pele de galinha, foi a vez de ouvir Bella Ciao, uma popular canção italiana de protesto da época da Primeira Guerra Mundial. A canção meio gypsy foi acompanhada com um «El Pueblo Unido Jamás Será Vencido», que teve direito a um coro final. Assim estava fechado mais um concerto que prometia uma noite ainda bem viva.
Há um ano atrás, os Moon Duo infernizaram de riffs uma Galeria Zé dos Bois demasiado preenchida. Em Março deste ano, o vocalista e guitarrista Ripley Johnson esteve na mesma cidade que abrigou o Reverence com o seu projecto paralelo Wooden Shjips, para participar numa Cartaxo Session recheada de rock psicadélico e espectadores viajantes. Agora, num fim-de-semana abençoado do último mês de Verão, os Moon Duo regressaram a Portugal para oferecer um espectáculo completo. Música, luzes, acção. Num ritmo compassado por vozes gritadas e arrastadas, o grupo agarrou o público sem vergonha e prendeu-o dentro de uma realidade virtual construída através de teclados distorcidos e jogos de luzes. Os Moon Duo em destaque com rock espacial numa noite bem encaminhada.
E assim termina a primeira edição de um festival que fez história e que, seja qual for o futuro, já escreveu das páginas mais bonitas na história de Portugal e da música. Foi contabilizado um total de 8000 pessoas a passarem por um festival que proporcionou um cartaz gigante, um recinto de fácil compreensão e nada sufocante, comida diversa, preços acessíveis, pessoas de toda a parte e uma Valada Ribatejana espantosa. Com detalhes mínimos a melhorar, ficou no facebook do Reverence Valada a expressão «Força 2015»! Estaremos aqui para o ano, para não perder mais história a acontecer. Façamos então mais uma reverência.
Textos: Alexandre R. Malhado e Joana Canela
Fotos: Francisco Fidalgo
Vídeo: Pedro Ponte