As festas de abertura possuem um leque enorme de utilidades. Podem acolher campistas, induzir um certo espírito ou pode até mesmo ter funções de promoção. Mas, como seria de esperar, um espectáculo de abertura para a primeira edição de um festival tão aguardado, como o Reverence Festival Valada, só poderia ter distinção. Apesar do recinto ser na Valada, foi em plena capital que Stone Dead, The Telescopes, Naam e Ringo Deathstarr abriram o tão esperado festival. Todos iriam repetir a sua visita a Portugal no dia seguinte, no primeiro dia de Reverence, excepto Stone Dead.
Se tivessem chegado àquele Cais do Sodré boémio às 22h iriam ficar alegremente tristonhos. O Sabotage, que ainda não tinha aberto as portas, encontrava-se quase deserto de espectadores mas cheio de músicos que apreciavam o ar fresco da digestão lisboeta. Poderiam ouvir John Bundy, baixista dos Naam, dizer: – «Todos os artistas estarão no mesmo hotel… imagina agora o que seria estar a beber cerveja, na piscina do hotel, com os Hawkwind. É essa a festança que todas as bandas estão combinar para o Reverence!»
Apesar da falta de pontualidade do público e do próprio estabelecimento, quem por ali esperou pacientemente pelo início dos concertos teve a primeira dose do espírito do Reverence: a descontração, a fácil e humilde interacção directa com os artistas e, acima de tudo, o constante sentimento de novidade.
22h53. Assim começou. Stone Dead, único grupo português desta pequena introdução no capítulo Reverence 2014, foi um agressivo e eficaz primeiro suspiro em forma de riffs pentatónicos e headbang. Com poucos pedais à mistura, o rock ‘n’ roll cru de Stone Dead mostrou-se inflamado por pesados riffs stoner de guitarra, como foi inevitável em Fire ou Evil Monkey, sem perder o vocal épico e embriagado semelhante a Josh Homme. City, tema dominado pela harmónica e pelos repetidos la, la’s vocais que marinam nos acordes silenciados pelo palm mute, acabou por ser uma montra de solos de guitarra. Stone John ditou o fim do espectáculo, com bpm’s acelerados e acompanhados por uma voz distorcida e por um trio de cordas viciadas nos clássicos riffs dos 70, com dinâmicas de guitarra que fariam Jimmy Page querer solar por cima. Poucos eram os que estavam ali para ver o triunfo do rock de alcobaça, que já mereciam o seu espaço num dos palcos do Reverence deste ano. Mas os que estavam, não pouparam no air guitar e nas palmas.
Após um breve e relaxado intervalo, acessivelmente passado com os Naam e com metade dos Ringo Deathstarr, era altura de Telescopes. Já só faltavam 20 minutos para deixar de ser oficialmente véspera de Reverence e Stephen Lawrie, vocalista dotado de uma voz gutural, expunha uma agonia que se misturava numa ambiência negra e flutuante. Violence, tema tocado, prolongou-se e misturou-se com outras canções. O concerto pareceu ser, aos corpos de quem via e ouvia, uma só canção inteira, prolongada por berros pouco perceptíveis (apenas sentidos) e por um arranjo instrumental espacial e com noise rock organizado. O sistema de som e a equalização ali apresentada não era a ideal para o tipo de música que ouvíamos, mas notava-se onde aqueles cinco elementos nos queriam levar. Sem sapatos e a berrar no chão, Stephen colocou, a quem entrou na órbita dos Telescopes, de olhos fechados, a mover o corpo e intrigado. «You make me feel like I wanna die» repetia aos berros o senhor da voz, enquanto cada instrumento fechava mais um concerto da noite. 12h34.
Naam, com quem já tínhamos falado antes, auguravam grandes expectativas em relação a este seu primeiro concerto em Lisboa. Vindos directamente de Nova Iorque, eram donos de baixo que indicava o esqueleto da canção com riffs stoner vestidos de licra medieval que viajam no tempo com os teclados espaciais. A guitarra, apesar de tímida e com pouco solista, dava o balanço em dedilhado. A canção Skyline Slip foi o momento magistral, movimentando uma audiência mais composta em diversos headbangs e air guitars. 2H01. A madrugada já ditava clientela nova que pouco sabiam do Reverence, mas que trocaram o Vogue Fashion’s Night Out por uma boa dose de música. Desde barbudos até à Soraia Chaves, a casa já estava mais composta pelos verdadeiros madrugadores lisboetas.
Ringo Deathstarr começaram com uma clássica shoe-dancing-gazer In Love, que teve direito a um erro pequeno técnico resolvido com um comeback épico na linha mais catchy desta canção: «You’re unbelieveble», a fazer lembrar o típico tema karaoke dos EMF. Com um alinhamento composto maioritariamente por temas do mais recente EP God’s Dream, não deixaram de parte clássicos saltitantes como Imagine e com a Slack, que foram dançados como se no dia seguinte não os pudessem voltar a vê-los. Também houve tempo para exaltar a doce e hipnótica voz de Alex Gehring em God’s Dream e Flower Power, canções submersas num sonho molhado de reverb. Vestida a rigor, com uma t-shirt do Zero dos Smashing Pumpkins, seria natural vê-la a tocar com um baixo de 3 cordas, mas desta vez mostrou-nos que também sabe tocar num baixo regular. Os riffs stoner envolvidos em acordes grunge fazem de Nowhere a canção mais dançada do pescoço para cima, sem esquecer as origens shoegaze dos primeiros discos. A verdade é que Ringo Deathstarr aparenta sofrer de uma frenética overdose de géneros, fundindo grandes elementos dos anos 90, onde o shoegaze, o stoner rock e o grunge cortejam-se mutuamente. Para compensar o facto de não tocarem os aclamados High e Kaleidoscope, despediram-se de Lisboa com uma RIP, que marcou a noite de abertura no Sabotage com 3 minutos fáceis de twee melancólico balanceado pela dança de quem ouvia. A harmonia entre a guitarra e o baixo, ao estilo de The Cure, bastou para valer os 15 euros de quem apenas procurava boa música.
Já era dia 12. Era dia de Reverence. Lisboa já possuía o sabor das horas vindouras de vida na Valada. Quem estava a pensar em ir, ansiava. Quem não pensava em ir, invejava. Quem não conhecia, intrigava. Apesar de pouca gente, quem lá esteve pôde adquirir uma amostra urbana do que seria a primeira edição do festival mais psicadélico de Portugal. Façamos então uma reverência.
Fotos: Hugo Amaral