Ao segundo capítulo, os Osso Vaidoso declaram guerra à pop com uma obra-prima suja e experimental.
Bergman fez sempre o mesmo filme; Buarque, sempre o mesmo disco. Se os perdoamos é apenas porque são Bergman e Buarque. A regra não deve ser, porém, esquecida: a arte como eterno devir. Ficar parado? Antes o poço da morte que tal sorte.
Talvez por isso admire tanto Ana Deus e Alexandre Soares: há décadas no ofício, sem nunca tomarem duas vezes banho no mesmo alguidar. Que têm os Três Tristes Tigres a ver com Ban ou GNR? Mesmo quando a dupla se manteve junta, na transição dos TTT para Osso Vaidoso, novamente se reinventaram, simplificando a linguagem e arrumando a electrónica na garagem. E agora, ao segundo álbum, tudo muda mais uma vez. Onde Animal, de 2011, era divertido, quase new wave, Miopia é violentamente anti-pop: denso, experimental e intimista. O porteiro tem ordens bem claras: barrar o acesso ao mais leve indício de fórmula ou cliché. Nem o formato-canção é autorizado a entrar.
A poesia do disco, mais filosófica e universal, puxa justamente para essa estética menos imediata. Ana Deus, cansada da espuma dos dias, decidiu mergulhar nos grandes temas da nossa condição: o amor, a vida, a guerra, a morte. Para o festim, convida poetas de diferentes épocas, desde o renascentista Sá de Miranda até ao contemporâneo Alberto Pimenta. Ao nos reconhecermos mesmo nos poemas mais antigos, percebemos que a natureza humana é surpreendentemente teimosa.
Numa das faixas, Ana Deus canta: “não estamos preparados para nada / certamente que não para viver”. Também Miopia é como a vida: inacabada e imperfeita, áspera e espessa, ora grito, ora sussurro.
Senhor Osso tem toda a razão para suas vaidades. Não é fanfarronice, é dom para a coisa.