O álbum de estreia de Etta James, At Last!, é elegante e rude. Como um diamante luzindo na lama.
Etta James nasce em 1938, na “cidade dos anjos”, em berço de ferro enferrujado, filha de pai incógnito e de mãe adolescente. Dorothy Hawkins, com apenas catorze anos, não consegue criar o seu rebento. Um casal amigo assume essa responsabilidade. Sob a influência da avó, frequenta desde pequena a Igreja Baptista, e é no templo do Senhor que a sua voz é descoberta. Aos cinco anos de idade, já é solista no coro gospel, encantando não só os fiéis que frequentam a missa, mas também os que a seguem pela rádio. Ser uma criança-prodígio é um presente envenenado, agravado pela insensatez dos que a rodeiam, como o maestro do coro – que lhe bate no peito para que ela aprenda a projectar a voz de mais fundo – ou o pai adoptivo, que a acorda a desoras, com maus modos, para exibir, junto dos amigos do póquer, os dotes da sua menina de circo.
Aos doze anos, a sua mãe adoptiva morre. É então que a mãe biológica aparece, levando-a para San Francisco. Dorothy leva uma vida errante, alugando o corpo ao tostão, deixando a filhota muitas vezes entregue a si própria. Para fintar as mágoas, Etta James vai urdindo pequenas delinquências com outras miúdas esquecidas pelo mundo.
Aos quinze anos, forma um conjunto doo-wop – as Creolettes – com duas amigas de Nova Orleães, ensaiando bonitas harmonias vocais pelas esquinas da cidade. Num certo sentido, a sua educação musical está agora completa: primeiro, a sagrada igreja; por fim, a rua profana…
Aos dezasseis anos, é descoberta pela Modern Records, importante editora de blues e de R&B, casa de Little Richard, Ike & Tina Turner e John Lee Hooker. As Creolettes mudam de nome para The Peaches. O seu primeiro single, “Roll With Me, Henry” – um rock’n’roll malandro com salpicos doo-wop -, tem um sucesso de tal ordem que chega a primeiro lugar da tabela R&B.
Etta James desfaz-se da parceria com as manas Mitchell, passando a gravar em nome próprio. Entre 1956 e 1959, vai continuando a lançar singles divertidos mas esquecíveis, longe dos holofotes das tabelas de vendas.
Até que, em 1960, é redescoberta pela Chess Records (a mítica editora que inventou o blues de Chicago, albergando gigantes como Muddy Waters e Howlin’ Wolf). Leonard Chess deposita grandes esperanças em Etta James, achando que ela tem o potencial de entrar no mercado pop. De maneira que os irmãos Chess investem todas as fichas na sua nova estrela feminina, concebendo cuidadosamente o seu álbum de estreia: o elegante At Last!, lançado já no final de 1960.
Pela primeira vez, é escolhido um repertório à sua altura, quase só standards de primeira linha sobre a montanha russa do amor (mais sobre as descidas a pique em direcção ao abismo, do que sobre as subidas abruptas rumo à abóbada celestial, mas ambas as vertigens têm lugar em At Last!). Finalmente, Etta James pode dar largas ao seu poder de interpretação, extravasando uma vasta paleta de emoções.
Se no âmago das canções está a música negra americana – o piano doo-wop, as escalas blues, a voz quente e desengravatada -, as orquestrações são europeias, com os seus arranjos de cordas macios e requintados. At Last! move-se neste tabuleiro de contrastes entre rudeza R&B e sofisticação nos ornamentos.
As melodias e os arranjos podem ser irrepreensíveis mas o que torna este disco tão especial é a pujança emocional da sua voz e a coragem com que expõe a sua vulnerabilidade. Na canção de abertura, “Anything to Stay You’re Mine”, os gemidos de sofrimento são tão lancinantes – “oh, oh, I’m so blue” – que parece que escarafuncham o nosso coração com um canivete. Quando chega a “my heart cries”, o seu poderoso contralto falha propositadamente em “heart” – o som do coração a quebrar…
Se estes lamentos do peito destroçado dominam At Last!, a sua voz enfeita-se com muitos outros cambiantes emocionais. Veja-se o caso de “I Just Want Make Love to You” – blues maroto celebrizado por Muddy Waters -, onde é a volúpia que impera. Primeiro, a sua voz é rugido, a bazófia da conquista. Mas depois torna-se dengosa, para não dizer lasciva, sussurando-nos ao ouvido: “love to you”. Wink wink. Nudge nudge. Say no more…
A sua voz, habitualmente no limite, cuspindo angústia em ferozes rugidos, sabe também ser plácida quando quer. É o que sucede no tema-título, a sua canção assinatura, onde o êxtase do amor não é eufórico mas sereno, a doçura do sol da manhã depois da fria madrugada. “At Last” é um lugar comum nas playlists de casamento, quando os noivos ainda têm a ilusão de que o amor é eterno. As bonitas baladas “Stormy Weather” e “Sunday Kind of Love” têm o mesmo registo: menos espalhafatoso, de uma suavidade espessa, que apetece trincar.
At Last! reavivou a carreira de Etta James, dando-lhe uma nova credibilidade artística. Vendeu bem na tabela R&B mas, ao contrário das expectativas, mal beliscou a tabela pop. Havia qualquer coisa de profundamente visceral e indómito em Etta James que fez com que o público americano branco do início dos anos sessenta não se conseguisse identificar. Não faz mal, ficou o primor de At Last! para a posteridade, uma das pérolas fundadoras da soul moderna.