O disco mais cru de Nina Simone, mandando as big bands para o diabo que as carregue.
Não há forma de contornar o pecado original. A América foi edificada sob alicerces sinistros, erguida sobre pilhas de corpos de escravos, cujo lastro de sangue perdura até hoje.
Quando, no final dos anos 50, Nina Simone começa a sua obra, ainda havia apartheid no sul profundo onde cresceu e a luta pelos direitos civis estava então no início. Nina não adere de imediato ao movimento mas desde o seu primeiro disco (em 1959) que subverte o esperado de uma artista negra, misturando jazz com música clássica, blues com Kurt Weill, gospel com Édith Piaf.
Se esta sua liberdade radical abriu importantes portas para quem veio a seguir, também teve o seu reverso da medalha: a intrusão estética de uma certa pompa erudita, nem sempre a melhor aliada da sua voz de dor e carvão. Foi isso que aconteceu nos seus discos para a Phillips, encantadores, ninguém o questiona, mas onde enxurradas de cordas e de sopros traíram, por vezes, a pureza de breu da sua voz.
Quando em ’67 se muda para a RCA, Nina fez questão de se livrar de todos os ornamentos supérfluos, gravando o disco mais cru da sua carreira: Nina Simone Sings the Blues. Para recriar a austeridade do blues de Chicago, Simone e o seu piano fazem-se acompanhar apenas por meia dúzia de músicos de sessão (com a obrigatória harmónica e um par de guitarras eléctricas no pack).
Não se pense, porém, que se trata de um disco purista à Muddy Waters. Se, de facto, existem por aqui alguns blues a régua e esquadro – quase obscenos na sua tensão sexual – também é verdade que outras formas se insinuam (do gospel ao jazz, da soul ao ragtime), sempre filtradas por uma sensibilidade retro e bluesy.
Sem nenhuma obesa big band a se intrometer entre nós e o seu génio interpretativo, sentimos uma vulnerabilidade inédita no seu canto. Destacamos, a este respeito, duas enormes canções. No clássico de Gershwin, “My Man’s Gone Now”, acompanhado apenas pelo piano e um baixo delicadíssimo, a voz de Nina uiva de tristeza fúnebre, gelando a nossa espinha. Em “Since I Fell for You”, a sua entoação emocional é ainda mais complexa, expressando dor e desejo ao mesmo tempo, a dor de um coração partido e o desejo que ficou por saciar.
Talvez tenha feito, antes e depois, discos superiores, admitimo-lo. Mas em nenhum outro disco de Simone se consegue ouvir tão distintamente cada grão da sua voz de cacau, cada fracção do seu silêncio solene. A voz da própria noite escura, atrevemo-nos a dizer.