Thriller, o disco mais vendido de sempre, dispensa apresentações. Michael Jackson inventando a pop dos anos 80.
Off the Wall, de 1979, produzido por Quincy Jones, fora um triunfo estético – talvez o melhor álbum da era disco – e um êxito comercial, vendendo dez milhões de exemplares no mundo inteiro. Porém, para os padrões insanos de Michael Jackson, soube a pouco. Doera-lhe particularmente o facto de só ter vencido um grammy (como melhor intérprete masculino de R&B). Coitadinho…
Ferido pelo ultraje, Jackson jurou a si próprio que o disco seguinte seria tão demolidor que o mundo não teria outra hipótese senão subjugar-se. Quincy Jones aceitou o repto, subindo a fasquia de toda a empreitada. A ambição era demente: escolher nove malhas assassinas, um álbum só de singles. O processo mais louco ainda: ouvir centenas de canções até lá chegar. A qualidade do som teria de ser igualmente irrepreensível. Vídeo-clips bombásticos fariam o bombardeamento final.
O desenho a régua e esquadro foi recompensado: Thriller foi um sucesso retumbante. Não falamos simplesmente de ter chegado a primeiro lugar (isso seria canja). O êxito é de outra escala: o disco mais vendido de sempre! Pela primeira vez na história da pop, um álbum pariu sete singles, todos ascendendo ao top 10. Os tão desejados grammys foram também conquistados, oito troféus levados para casa.
Onde Off the Wall é monogâmico, Thriller é orgulhosamente promíscuo: cinco malhas de R&B-disfarçado-de-pop (viva!), três baladas românticas (bah!) e uma ilha rock’n’roll (viva outra vez!). Uma estratégia para conquistar vários segmentos de mercado (putaria com orgulho, putaria até morrer!). O que se perde em unidade ganha-se no apelo pop de cada gema (a soma das partes maior do que o todo).
Se o travo dominante em Thriller é um pós-disco não muito distante de Off the Wall, há agora um sentido pop mais apurado, e uma arrojada modernidade, tornando tudo mais apetecível. Com esta roupagem contemporânea, fintou-se habilmente o anátema lançado contra o disco a partir de 1979. Como dizia Nile Rodgers, dos Chic, o disco nunca desapareceu – passou a chamar-se… pop.
“Wanna Be Startin’ Something”, escrita por Jackson, é um funk frenético com cânticos tribais, um enxerto de pancadaria rítmica. Na cadência obsessiva, há um arrojo quase experimental. O ponto de vista – e o tom da voz – é paranóico: Jackson queixando-se de ser canibalizado pelos media. Mal sabia o mundo das cenas dos próximos episódios…
“Thriller” é todo um tratado sobre a nova pop: uma irresistível linha de baixo aborrachada, uma drum machine deliciosamente robótica e um refrão disparado à queima-roupa. A ambiência de filme de terror manhoso dá um saboroso travo camp à coisa. O monólogo de Vincent Price não assusta uma criança de dois anos mas faz-nos sorrir de tão cândido que é.
“Billie Jean”, escrita pelo próprio, não é apenas mais uma boa malha: é a canção-assinatura de Michael Jackson! O seu baixo groovy e gingão, as teclas sincopadas e o refrão maior do que a vida catapultaram o single para o topo da tabela. Os seus salpicos de voz sintetizada podem gritar “anos 80!” mas a malha envelheceu bem, rebentando ainda hoje qualquer pista de dança. A letra também está bem urdida, voltando ao tema de “Wanna Be Startin’ Somethin'”: o artista em reclusão, refugiando-se de um mundo ameaçador…
Mas nem só de R&B dançável e “apopalhado” vive Thriller. Façam o obséquio de ir buscar a caixa de lenços kleenex. É altura de falarmos da lamechice das baladas.
“The Girl is Mine”, um dueto com Paul McCartney, seria uma excelente canção para um musical dos anos 40 mas fica só ridícula num disco pop dos anos 80 – uma mistura fatal de naftalina com canderel. E não é que o tema mais patético de Thriller foi escolhido para primeiro single! A estratégia foi, porém, inteligente, usando um dos nomes mais consensuais do establishment como um engenhoso passe de entrada. O single chegou a segundo lugar – o cavalo de Tróia já dentro das muralhas. Agora é só pilhar à discrição…
“Human Nature” também é melosa mas tem uma melodia tão bonita, e uns arranjos tão delicados, que perdoamos o excesso de açúcar. Ainda para mais, temos uma desculpa perfeita para podermos apreciá-la publicamente: Miles Davis escolheu-a para uma versão. Quando o deus Miles valida uma canção, as nódoas mais profundas de azeite são instantaneamente removidas…
“The Lady in My Life” vai pelo mesmo caminho: bonita e foleira como uma balada do Stevie Wonder. Saboreamos o guilty pleasure, confessamos, mas com os estores devidamente corridos.
Faltava um último aríete para derrubar a muralha do mainstream: uma malha rock. Instigado por Jones, Michael Jackson escreve a orelhuda “Beat It”, com gasolina nos riffs e um solo pirotécnico de Van Halen. A letra é naive: um apelo pacifista contra a violência dos gangues (very nice, but maybe in the next world…). Mais um demolidor single a chegar a número um (os putos brancos dos subúrbios também levados na enxurrada).
Petardos pop irrecusáveis? Voz incrível com os gritinhos da praxe? Sim, mas muito mais do que isso. Thriller é um fenómeno cultural que transcende a própria música. Quem era então miúdo lembra-se bem do misto de fascínio e de medo que o vídeo do “Thriller” nos provocava (ou das tentativas desajeitadas para imitarmos o deslizante moonwalk). No fundo, o Michael Jackson está para os anos 80 como os Beatles estiveram para os anos 60, confundindo-se com a própria década (espelhando-a e definindo-a ao mesmo tempo). É preciso não esquecer que estamos em pleno reaganismo, com o seu culto boçal do dinheiro, do sucesso e da celebridade, o caldo cultural no qual Jackson é coroado como “rei da pop”. Thriller é um blockbuster, tão emblemático dos eighties como o “E.T.” ou o “Indiana Jones”, rentabilizado em merchandising até à náusea: vendem-se miniaturas do Michael Jackson, casacos vermelhos à Michael Jackson, luvas à Michael Jackson, tudo o que se mexa à Michael Jackson…
Se nos choca tudo ser tão obscenamente empresarial, é justo também assinalar que a escala do seu sucesso – inédita para um músico negro – derrubou estúpidos preconceitos raciais. Um exemplo é o da própria MTV, que nos seus primeiros tempos barrava o direito de antena ao R&B, cingindo-se à “brancura” do rock. A Epic Records teve de fazer um braço-de-ferro com a MTV (ameaçando uma debandada de todos os seus artistas), para que os vídeos do Michael Jackson pudessem lá passar. Não se arrependeriam da cedência: foram um monumental sucesso, sempre em altíssima rotação. Uma vez aberta a porta para a música negra americana, ela nunca mais foi fechada. Que o digam nomes como Prince, Tina Turner e Stevie Wonder. Não deixa de ser irónico que a figura que mais ajudou a democratizar a música negra-americana tenha tido, ela própria, uma relação tão complicada com a sua própria cor de pele. Mas isso já são outros quinhentos…