Com oitenta anos de vida, John Cale regressa aos discos com o novíssimo Mercy. A lenda volta a sair da sombra para trilhar caminhos densos, sinuosos e fascinantes.
John Cale é um dos últimos grandes heróis do rock dos anos sessenta. Está vivo, ainda grava discos e faz digressões. O que mais se poderá desejar de um indivíduo que se tornou uma lenda? Para os mais distraídos, ou para os de mais tenra idade, convém perceber que falamos de um dos fundadores dos míticos Velvet Underground, de que aliás é o único sobrevivente, se tivermos em conta a formação original. Lou Reed, Sterling Morrison e Angus MacLise já por cá não andam, como bem se sabe. Só mesmo John Cale ainda respira e agita verdadeiramente a sua arte. Moe Tucker, que muito cedo substituiu Angus, o percussionista e baterista dos primeiros tempos, ainda está vivo. No entanto, e mesmo assim, de Tucker já não temos notícias há mais de vinte anos. Cale, como agora volta a acontecer, ainda vai dando um ar da sua graça.
O disco é denso, tenso, e vem em contramão, se tivermos em consideração os tempos rápidos e esquivos em que vivemos. Mercy é um álbum que dá trabalho ao ouvinte. É um álbum que se demora, que não tem pressa, e que se presta a dizer coisas e a refletir sobre o mundo.
Como já referimos, o novo disco de John Cale não facilita a vida a quem o ouve. Algumas canções são perturbadoras, não tanto pelo que dizem, mas sobretudo pelo peso, pela penumbra, pela soturnidade que transportam. São muitos os colaboradores escolhidos pelo bom e velho galês na feitura de Mercy. Laurel Halo, Weyes Blood, Sylvan Esso e os Animal Collective são apenas alguns, talvez os que mais se destacam. “Mercy”, a canção de abertura e que dá título a todo o trabalho, vai-se desenrolando aos poucos, sendo que a voz de John Cale faz lembrar a do velho amigo David Bowie, mais um que, entretanto, deixou de pertencer (fisicamente) a este mundo. Aliás, Bowie parece estar presente em todo o disco. “Mercy” é, de facto, um ótimo tema. E por falar em Bowie, embora agora noutros termos, ele volta a estar presente noutra canção, a cantarolável e serena “Night Crawling”, onde se recordam os tempos idos de meados dos anos setenta, em que Cale e Bowie percorriam as ruas de Nova Iorque em conversas tantas vezes promissoras de um encontro de trabalho futuro, embora sem que tal coisa viesse a tornar-se real. A memória desses encontros acaba agora materializada numa das mais conseguidas canções de Mercy. Como também é, aliás, “Story of Blood”, enigmática e bela, nos seus muito próprios padrões. Nesta, a cantora e compositora Wayes Blood dá uma perninha, sendo que a sua voz ecoa como contraponto ao gravíssimo tom de John Cale.
Todo o disco é muito electrónico, repletos de ruídos que certas máquinas de som são capazes de produzir com belo efeito, embora talvez um pouco datados em determinados instantes. No entanto, essa datação (propositada?) não faz de Mercy um álbum anacrónico, mas antes um trabalho com toque arty, efeito tão típico de quem tantas vezes usou essa característica como fórmula de afirmação musical. “Time Stands Still”, que conta com a participação de Sylvan Esso, é um dos melhores momentos de todo o álbum, que apresenta uma hora, dez minutos e trinta e quatro segundo de duração. Os doze temas que em Mercy se escutam são longos, sobretudo se pensarmos no tradicional formato-canção comum. A mais curta tem quase cinco minutos, a mais longa ultrapassa os sete e meio.
Destaquemos, no entanto, outros momentos de bom interesse, como “Moonstruck (Nico’s Song)”, “Everlasting Days”, com os truques costumeiros dos Animal Collective, que quebram constantemente sentidos melódicos e rítmicos estabelecidos previamente na canção, e ainda a derradeira “Out Your Window”, que bem poderia ser um tema dos Sparks, em quase formato câmara lenta.
No fundo, e para colocarmos um ponto final nestas já longas linhas, o que apetece salientar é o regresso de um músico que nos foi dando, ao longo de várias décadas, muitos e bons momentos de satisfação. Mercy não será a sua obra-prima, mas pode muito bem ser o seu último e muito digno opus, e isso é coisa séria e de respeito. Ouvir John Cale é fazer uma vénia com apreço e gratidão a um dos grandes, a uma lenda viva, a um perene mito humano.