Uma bujarda de estilos musicais, fetiches sexuais, psicoses e portugalidade, num disco a transbordar de criatividade.
Os Ena Pá 2000 são uma instituição portuguesa, como o Licor Beirão ou o bar da Madame Kikas. É uma espécie de mistura incrível de vernáculo, intelectualidade recalcada e rejeitada, misturada com piadas baixas e uma profunda portugalidade, tudo metido numa betoneira de uma criatividade musical sem fronteiras nem limites. Quem não os percebe, e não vê para além da caralhada, nunca os vai perceber. Compreende-se o fenómeno e só podemos ter pena por essas pessoas.
A luta dos Ena Pá 2000 já dura há muito, e em 2004 eles assumiam que estava para continuar. A Luta Continua! já veio um pouco fora do tempo áureo da banda, longos cinco anos depois do excelente 2001: Odisseia no Chaço.
Ainda assim, é um regresso em grande forma. A capa, o título e o grafismo do disco levam-nos para a propaganda soviética comunista, mas com um twist: os protagonistas desse visual são meia dúzia de camarões, e há poucos símbolos mais poderosos da paz, à mesa, do que um pratinho de gambas.
Manuel João Vieira nunca foi não-político, ainda que sempre apartidário e demasiado livre. Mas a sua política é mais antiga, mais estrutural, num mundo de clero corrupto e industriais da mesma estirpe, de uma burguesia instalada e perversa, tudo a conspirar para cercear a liberdade feita de loucura que é o mínimo a que um homem pode almejar. Daí que este poderia facilmente ser um disco político, se ele quisesse. Mas o faux-cirílico é só para despistar.
O que temos neste A Luta Continua! é mais do mesmo, mas em bom. Disparate, taradices e maradices, piadas porcalhonas, poemas de cama e bidé, a atrasadice mental (ainda se pode dizer isto?) que tanto amamos. Tudo com muito e apurado sentido de humor, servido numa cama esfuziante de estilos musicais.
No primeiro tema, levamos logo com um clone do Professor José Hermano Saraiva a falar da qualidade da droga no tempo da Dona Urraca. Está dado o mote, em “Doutor Bayard” (outra instituição portuguesa). Depois deste rock ligeiro, vêm a languidez de “Tamagoxti”, com direito ao que é provavelmente o único trecho musical do mundo protagonizado por estas mascotes virtuais que entretanto foram extintos.
Em “Bóbó bem bom”, o tema é… bem, o tema é fácil de perceber. De salientar o início, com um locutor delirante a dar as boas-vindas ao “joelhódromo de Fátima” e a recomendar a visita ao museu de cera local. Eu já lá fui, e concordo inteiramente. A conclusão da música é que um bóbó, seja bom ou menos bom, é sempre bom, num tema que passa por vários estilos e tem até direito a uma participação de Roberto, o pato-fantoche.
“Eu já mi vim” é a história de um português cansado e da sua companheira brasileira, ele que só quer descansar depois do orgasmo e ela a querer continuar a festa, sem sucesso. Um tema misógino a pedir cancelamento (felizmente ninguém ouve este disco, portanto estamos bem).
Já a faixa-título cresce em tom de música de intervenção, contando com o grande slogan: “A luta continua/ contra os filhos da puta”. Concordamos.
“Barbarella”, que é prima da Anabela, leva-nos numa viagem ao espaço, na companhia de uma astronauta ninfomaníaca, antes de darmos o protagonismo à “Doce Susana”, prostituta em Aljustrel, que merece uma serena balada acerca da sua labuta.
Segue-se a apropriação cultural (é assim que se diz, não é?) de “XCabeça Grand-Macaronésia”, numa morna que nos leva de volta ao registo do clássico “Baltazar”, e que revela as dificuldades de quem é excessivamente dotado, entre as pernas. Mas neste caldeirão ainda há espaço para o freak-jazz progressivo de “Porque já cabia”, que dispara numa rockalhada que desemboca, logo a seguir, na adrenalina de “Talibã da Mamã”, com uma das letras mais imbecis e deliciosas do cancioneiro desta malta.
“Rosário (Cor de Caramelo)” é uma música de amor made in Africa em quase-reggae, num sotaque que parece encomendado para o cancelamento woke do século XXI.
A fechar, regressa o clone do Professor José Hermano Saraiva, falando de um extraordinário bordel que no Século VIII se terá instalado na linda terra de Vila Franca de Xira. É com “Adeus, Ó Vila Franca de Xira” que nos despedimos.
Ou será? É que há uma faixa escondida, a portentosa “Teresa Guilherme”, em que Manuel João, cedendo aos encantos da apresentadora, pede que ela o deixe “pôr o meu verme no teu paquiderme”. Uma ocasião para, mais uma vez, fazer brilhar o lendário Phil Mendrix, o mago do solo da guitarra eléctrica.
Terminadas as 20 músicas de A Luta Continua!, ficamos de sorriso rasgado e com a cabeça cheia. São tantas as linhas certeiras, os estilos musicais, a imaginação delirante, que só queremos começar de novo.
Isso e saber onde é que esta malta arranja droga deste calibre.