O legado de Nevermind é colossal e impossível de identificar, ainda hoje, na totalidade. Enterrou o passado; falou a toda uma geração que precisava de um hino e de um som que pudesse chamar seu.
Sim, o Santo Graal. Ouçam os primeiros 30 segundos, um minuto, do “Smells like teen spirit”. Primeiro aquele riff simples e inconfundível; depois a bateria, furiosa, ameaçadora, devastadora; de seguida a guitarra já cheia de distorção; depois a acalmia, e o baixo de Novoselic, até entrar a voz de Cobain. Neste menos de um minuto, mesmo sem ser preciso chegar ao refrão, temos o hino de uma geração. Basta, até, ouvir só o riff inicial e a entrada da bateria. Ouçam esse som. Não é apenas uma óptima linha de punk-rock: é o som de milhões de putos a marchar, e de uma revolução a caminho.
Falar de Nevermind, das especificidades musicais de Nevermind, será, para quase toda a gente que interessa, um exercício desnecessário. Todos nós ouvimos o disco vezes sem conta. Está impregnado na nossa mente, nos nossos circuitos cerebrais. Entrou na nossa corrente sanguínea, misturou-se com a nossa biologia, e graças a todos os santinhos há de cá ficar para sempre. Nevermind é um monumento e, por mais alternativo que pudesse soar na altura, é agora uma instituição tão estabelecida como Pulp Fiction ou o McDonalds: não conseguimos imaginar o mundo sem ele.
Sim, é fútil escalpelizar o disco. O som foi catalogado como punk-rock, mas na minha opinião isso é errado e redutor. Os Nirvana nunca foram punk no som, mas sim na atitude. O som não é sequer “grunge”, essa palavra mitológica que nos trouxe tanta coisa boa mas que é preguiçosamente utilizada para descrever coisas tão diferentes como Stone Temple Pilots ou Alice in Chains, por exemplo. O som de Nirvana é, simplesmente, rock alternativo, e deve muito mais aos Sonic Youth do que aos Sex Pistols. Com uma pequena grande diferença: Kurt Cobain (que na minha opinião não era um génio nem nada parecido) tinha um dom para escrever melodias pop. Era um tipo que, se quisesse, podia ter qualquer tipo de banda, e teria sucesso, apenas com base na capacidade melódica. E a essas melodias acrescentou o “noise” dos Sonic Youth e uma atitude que fez dos Nirvana a maior banda do planeta.
Ouvir o disco agora, 22 anos depois, tudo encaixa perfeitamente. A sequência de abertura é demolidora: “Teen Spirit” (obviamente), “In Bloom”, “Come As You Are”, só parando para respirar na faixa seis, com “Polly”, para depois avacalhar tudo novamente com a “Territorial Pissings”. A rasgar até “Something in the Way”, provavelmente da músicas mais “haunting” desde “Atmosphere”, dos Joy Division. E, claro, a faixa escondida, uma jam carregada de distorção, só para reforçar a nota indie/punk.
Gravado (e editado) em 1991, Nevermind representa o gigantesco salto em frente de uma banda que, então, provou tudo o que valia. Basta ouvir Bleach, o primeiro disco, e comparar. Esse não era, de todo, um mau disco, mas a diferença, em termos sonoros, de coesão da banda e da coerência “temática” entre os dois discos é abissal. As razões são várias e, não havendo uma decisiva, todas contribuíram para o desfecho. Em primeiro lugar, e acima de tudo, a chegada de Dave Grohl. Aquele que é, provavelmente, o melhor baterista rock da actualidade, trouxe um poder uma coesão ao som da banda que moldou boa parte do seu poder. Em segundo lugar, o produtor Butch Vig. Agora um nome sonante (muito por causa de Nevermind), na altura não era uma escolha óbvia. Mas foi o tipo que agarrou em três gajos sem nada e em 70 mil dólares. Agarrou nas canções e ajudou e muito a fazer o disco da década. Em terceiro lugar, a contribuição de Novoselic, que eu atribuo a uma maior experiência e, sobretudo, à chegada de Grohl, que com ele compôs uma das melhores secções rítmicas de sempre. E, por último, a fantástica fertilidade criativa de Cobain, as suas músicas. Muitas delas vinham de trás, e a banda chegou a fazer uma primeira tentativa de gravação no Wisconsin. A voz de Cobain rebentou e tiveram de interromper. Na vez seguinte em que entraram em estúdio, já no mítico “Sound City”, de Los Angeles, Cobain trazia algumas novidades na manga: uma delas chamava-se “Smells Like Teen Spirit”, cuja versão inacabada havia sido estreada no início do ano, com uma letra bastante diferente da versão final.
É preciso ter noção de uma coisa. Menos de um ano antes, Cobain chegou a viver no carro, tirando os dias em que se refugiava do rigoroso inverno de Seattle no sofá de algum amigo. Tudo o que tinha era a sua visão. E, naquele estúdio, os planetas alinharam-se. Aqueles quatro talentosos e, sobretudo, empenhados indivíduos (a banda e Vig) tiraram partido disso.
Como já disse, não quero maçar-vos com tecnicalidades sobre a gravação, o double tracking vocal, os alegados problemas iniciais de Grohl em conseguir o seu som de bateria, etc. Porque, para mim, mais importante que tudo isso é a razão pela qual Nevermind mudou tudo. Os anos 90 começaram aí. E desde os primeiros acordes desse disco, a década foi dominada por esse fenómeno.
Eu tinha 13 anos quando o disco saiu. Andava na escola secundária de carcavelos e, juntamente com o Ricardo Romano, já tinha a cabeça cheia de música, ainda que tivesse o armário vazio de discos. Era o tempo da cassete, gravada, regravada e partilhada. Os únicos cds que tinha, na altura, eram uma colectânea do Elvis, o primeiro disco dos Resistência (que eu odiava e ainda odeio, mas que me tinham oferecido) e o magnífico Appetite for Destruction, dos Guns.
Para além de Guns, a minha dieta musical era basicamente Xutos (a primeira banda de que gostei realmente) e cenas dos anos sessenta e setenta, que me chegaram via Ricardo Romano, e que a ele haviam chegado via o seu irmão mais velho, o Mário. Doors, sempre, Hendrix, Janis e Led Zeppelin, sobretudo. Já havia Pixies, Silver Jews e outras jóias desse tipo, mas eu não sabia. E depois apareceram os Nirvana.
Da primeira vez que os ouvi foi na televisão. Foi num daqueles programas tipo Top +, que dava ao fim de semana, e que eu via religiosamente desde puto. O apresentador falou da banda com entusiasmo, que estava a fazer furor nos EUA. E depois rodou o vídeo. Aquele vídeo. Com aquele som. Naquele momento da minha vida. Ainda assim, não foi uma revelação, tenho de o admitir. Era tudo demasiado estranho. Nesse dia, foi como apanhar uma chapada no lado da cabeça. E ficou a zunir-me na mona durante vários dias. Não sabia como processar a informação, mas aquilo continuava a voltar-me à memória. O vídeo no ginásio, as cheerleaders blasé com o sinal de anarquia, no meio do caos de putos como eu. O vocalista, com pinta ameaçadora mas cuja cara ninguém conseguia ver bem. E aquele riff, e aquela bateria. Tinha ficado cá dentro, mas tive de esperar outra semana para ver novamente no programa. Armado em esperto e em diferente como sempre fui, dei o meu veredicto: o apresentador havia exagerado, o (!) Blitz tinha exagerado: era uma coisa de moda, e não ia pegar. Até que, pouco tempo depois, o Romano arranjou a cassete com o Nevermind inteirinho. Lembro-me que foi numa altura em que não havia aulas, e ele emprestou-me a cassete no mesmo dia em que me emprestou uma data de livros, sobretudo banda desenhada. E eu passei o dia seguinte deitado na cama, a ouvir o Nevermind no meu gravador de spectrum (não tinha aparelhagem nem nada que se parecesse) e a devorar as BD. Ao fim do dia, estava viciado. Fiz a minha própria cópia, que ainda tenho, meti-a no walkman, e eu tinha encontrado a minha banda sonora, a banda sonora da minha geração.
Quando voltei à escola, andava diferente. Tinha um segredo do qual muito poucos sabiam. Para além disso, sabia que, mesmo que aquilo pegasse, levaria semanas, talvez meses, até o “mainstream” escolar lhe tocar. Era demasiado estranho, demasiado sujo, para uma multidão que, regra geral, ouvia Queen, Madonna, Dire Straits e os Pink Floyd balofos e fateluxos do final dos anos 80. Era um segredo nosso, meu e do Romano, e só o confiámos a alguns escolhidos de confiança.
Desde então comecei a poupar o pouco ou nada que sobrava da mesada, chegando mesmo a não comprar pilhas para o walkman (algo impensável!) para poder vir a comprar o cd. Quando o tive na mão, tudo fez sentido. O visual, com aquela capa absolutamente icónica, integrava-se de forma completamente coerente com o som que ouvia há semana. Lá dentro, nada de letras completas, apenas um emaranhado de umas quantas. Duas fotos da banda: uma limpinha, dando finalmente rosto aos músicos; e outra, tremida, com Kurt a fazer uma caralhada. Fabuloso.
Thurston Moore, o santo padroeiro do verdadeiro indie (e homem que já merecia várias estátuas), explicou da seguinte forma a importância dos Nirvana, e de Nevermind: “mudou completamente a demografia e o alcance do rock alternativo”. Porque, a partir desse momento, era ok ser estranho e adorar uma banda estranha. Porque afinal era possível ouvir boa música, que nos falava directamente e que adorávamos, sem ter de ir aos anos sessenta e setenta. E porque tudo estava a acontecer “as we speak”, ao vivo e em directo. Era o nosso som.
Em Janeiro de 1992, Nevermind sobe ao lugar cimeiro do top de vendas norte-americano, muito ajudado pela intensíssima rotação do vídeo de “Smells Like Teen Spirit” numa MTV que ainda era um canal de música e que se orgulhava de estar na vanguarda do que se fazia. Mais significativo que isso: Nevermind destronou, do primeiro lugar, Dangerous, do outrora genial Michael Jackson, que na altura já só vendia muitos discos por causa do nome e porque toda a gente ouvia a mesma merda. Mais: no top dessa semana, encimado pelos Nirvana, constavam, nos 4 postos seguintes U2, Garth Brooks (o abominável Shania Twain masculino do country parolo), o já referido Michael Jackson e MC Hammer. A ascensão de uma banda suja e barulhenta de uma pequena cidade a 200 quilómetros de Seattle marcou o fim de uma era: o fim da era de música feita não para a geração de putos de então, mas para os babyboomers gordos e acomodados que haviam transformado e dominado o cenário cultural desde os revolucionários anos sessenta. Os Nirvana mudaram a indústria musical com um disco que a editora Geffen esperava que vendesse, na melhor das hipóteses, 70 mil cópias. Vendeu milhões, e ainda vende hoje. E não foram apenas os Garth Brooks desta vida a morrer às mãos de Nevermind. Mesmo no campeonato do rock, foi finalmente o término da praga do “hair rock”. Cobain, um feminista convicto e um activista dos direitos dos homossexuais, não perdia uma oportunidade para afirmar que o rock poderia ser muito mais do que o que reinava até então: um mundo de homens cabeludos de permanente, cantando sobre carros rápidos e comer tantas groupies quanto possível. Axl Rose, por exemplo, era o típico macho alfa, cheio de atitude e testosterona. Podíamos admirá-lo (e eu admirava-o) mas nunca nos poderíamos identificar com ele: uma superstar, encharcada em gajas, dinheiro e cocaína. Mas, com Cobain, era fácil identificar-nos. Era um inadaptado, como nós, e foi esse apelo, com todo o embrulho do Nevermind, que trouxe a revolução. É claro que Cobain nunca soube lidar com o sucesso, porque nunca aceitou que este trouxesse a necessidade de mais do que tocar música e fazer música: era preciso dar entrevistas, ver a sua vida privada devassada, estar com os fãs, viajar incessantemente e sem condições. Até à sua morte, amaldiçoou Nevermind, sobretudo pelo seu som “demasiado polido”. Foi esse som, e as melodias, que trouxeram os fãs. Os reais, os weirdos, sim, mas também os outros. Os “jocks”, os atletas do liceu, os que faziam bullying; os yuppies de Wall Street que queriam armar ao rebelde; os putos da família real britânica. “He’s the one, who likes all our pretty songs, and he likes to sing along, and he likes to shoot his gun, but he knows not what it means”, canta ele em “In Bloom”, como que antecipando o sucesso mainstream que viriam a ter, e que sempre o confundiu, ser adorado por gente que desprezava e que não o entendia, mas que cantava as suas músicas.
O legado de Nevermind é colossal e impossível de identificar, ainda hoje, na totalidade. Enterrou o passado; falou a toda uma geração que precisava de um hino e de um som que pudesse chamar seu; abriu caminho para toda uma geração de rockers que tanto nos deram (Pearl Jam, Alice in Chains, Pavement, Soundgarden, até Green Day, entre incontáveis outros) e alisou terreno para instituições como os Dinosaur Jr ou os Sonic Youth, de repente, deixarem de ser bandas consideradas estranhas e começarem a vender discos e a encher recintos maiores que um barzeco.
Foi o disco com o qual os conheci e, para mim, continua a ser o melhor. Ouvi o Bleach recentemente, e é um bom disco. Para a crítica, o In Utero é, talvez, mais maduro e mais completo. O Unplugged não me puxa, mas foi útil para, conjugado com o “efeito-suicídio”, trazer mais fãs para a banda. Mas, no Nevermind, o que ouvimos é o som de uma banda a dar o gigantesco salto em frente, uma banda que, naquele momento, estava a jogar o tudo ou nada. Devemos muito, muito, a este disco.
Actualmente só há 3 tipos de música: a alternativa (10%), a pseudo-indie (20%) e a comercialóide fabricada (70%). Mas não há nada parecido com os Nirvana, com aquela brutal dose de honestidade, de verdade, de expressão de angústia, num momento em que o que não falta é angústia a gritar para ser expressada. Como nos fazem falta, meus amigos.
E o quanto eu daria para agora, virgenzinho, ouvir pela primeira vez aqueles acordes iniciais do “Smells Like Teen Spirit”. Podemos querer ser snobs ou diferentes. Mas, para o bem e para o mal, é o hino da minha geração. E é uma felicidade poder dizer isto.
Excelente! É engraçado ver como um simples disco muda uma vida. No meu caso só é diferente o sítio e os amigos, mas o impacto na minha adolescência, na minha vida é igual. É realmente algo diferente quando nos identificamos com algo que está a acontecer no presente. É história a acontecer. Podíamos gostar de Doors, Hendriz, Led Zep, etc, mas Nirvana era naquela momento e ficou para sempre!