The Köln Concert, de Keith Jarrett, arrebata-nos com a sua poesia. O disco de jazz mais icónico da sua década.
Entre 1968 e 1971, Keith Jarrett integra a banda de jazz de fusão do Miles Davis. Porém, a experiência com teclados eléctricos acaba por o aborrecer. Abandona então os “brinquedos” – como os chama com desprezo -, regressando ao bom e velhinho piano acústico. E começa a dar concertos a solo totalmente improvisados (sem rede, se cair da corda é fatal). A possibilidade, mesmo remota, de tragédia dá uma saborosa gravidade aos espectáculos. Em 24 de Janeiro de 1975, na Ópera de Colónia, uma sucessão de azares parece prenunciar a queda do funâmbulo. Sede… Sangue…
Keith Jarrett chega a Colónia exausto, vindo de Zurich, quinhentos quilómetros e cinco horas enfiado numa 4L, com dores lixadas nas costas que não o deixam dormir. Qual não é então a sua fúria quando Jarrett, o perfeccionista, descobre que a Ópera de Colónia se enganara no piano, mais pequeno e em piores condições do que o suposto. Furibundo, recusa-se a tocar, mas a organizadora do concerto, uma alemã de 19 anos dedicadíssima ao jazz, lá consegue demovê-lo. Uma desgraça nunca vem só: o jantar num restaurante italiano chega tarde, tendo que engolir uma fatia de pizza à pressa mesmo em cima da hora.
Às onze e meia da noite, Jarrett está sentado ao piano, cercado por 1400 espectadores expectantes. Dorido, cansado, com fome e irritado – mexa tudo e sirva o desastre. O piano com um som medíocre – pouco ressonante nos graves, estridente nos agudos – não deixa dúvidas do que virá a seguir. E, no entanto, o milagre acontece: a mais bela improvisação a solo de Jarrett começa a assomar. As anomalias do piano obrigam-no a tocar de uma forma inédita, privilegiando as escalas do meio, e usando as teclas mais graves de uma forma intensa e percussiva. Deus escreve direito por linhas tortas: com menos teclas, encontra o infinito…
O concerto tem dois longos temas – o primeiro, mais plácido e cristalino; o segundo, mais frenético e propulsivo – e um breve encore final.
Tudo começa com quatro notas singelas, uma imitação bem disposta do aviso de chamada para o espectáculo (daí os risos na plateia). A introdução é delicada como os primeiros raios de sol da manhã. Ao terceiro minuto, começa um longo mantra, enlevando-nos pela repetição – a mão esquerda fechando-se em dois acordes, a mão direita soltando-se, ascendendo aos céus. O que mais nos chama a atenção é tudo fluir com tanta espontaneidade, como se não houvesse qualquer tomada de decisão, apenas um copo que transborda de tão cheio. Por vezes, com um demente virtuosismo (os dedos voando em doidas correrias); outras, modelando devagar o barro do silêncio. E sempre com um imaginativo melodismo, congregando tradições muito diferentes, da clássica ao hardbop, do gospel à pop, sem quaisquer linhas de costura a separá-las.
À medida que toca, Jarrett geme com o entusiasmo. Se as notas no piano são da ordem do transcendente, as suas grosseiras vocalizações parecem as da mais vulgar besta. Divino e animalesco ao mesmo tempo (humano, portanto). Jarrett dá outra explicação: ouve dentro de si mais sons do que os que consegue passar para o piano, gemendo para deitar cá para fora o que ficou por dizer.
Começa o segundo tema, de 36 minutos. A mão esquerda percute uma só nota como se fosse um tambor, irrequieta como um código de morse. A mão direita aproveita a deixa e põe a melodia a dançar, índios de fantasia saltitando no fogo. A dança tribal acaba ao oitavo minuto. Tudo agora é pausado e melancólico – o trecho mais poético de todo o concerto. Não é bem música, é mais um barco num lago ao luar, pescando sonhos perdidos. Jarrett não tem vergonha de ser belo e arrebatado. Talvez seja este o seu grande legado: devolver o lirismo à improvisação.
Jarrett continua a tocar sem interrupções mas o LP é mentiroso, dizendo que já estamos numa nova faixa, a “Part II b”. A mão esquerda volta a uma linha de batuque repetida até ao infinito, pesarosa, sombria e épica ao mesmo tempo, como quem chora a morte de um acarinhado patriarca. Mesmo no confim estreito de um só tom, a mão direita espraia-se para onde quer, também soturna e firme. Ao sexto minuto, entramos num território mais informe e macabro e dissonante, só para melómanos de barba rija. Nos últimos cinco minutos, tudo serena outra vez (depois da tempestade vem sempre a bonança). E, por fim, um longo e pesado silêncio. O público está tão estarrecido que demora uma eternidade até começar a aplaudir. O mestre agradece e abandona o palco.
Jarrett volta para um encore de seis minutos, o único momento do concerto que não é improvisado. Depois da vertigem da queda livre, sabe bem aterrar no colchão de penas. O tema tem qualquer coisa de música de genérico, belo e nostálgico como a “Balada de Hill Street”. Um fim leve para lavar o palato.
Para gáudio da posteridade, o concerto foi captado em vinil, publicado em Novembro do mesmo ano. Sem qualquer promoção, foi-se partilhando o segredo de boca em boca, até o mundo inteiro o conhecer: quatro milhões de exemplares vendidos, algo inédito não só para um disco de jazz a solo, como para um disco de piano de qualquer género. Da noite para o dia, Keith Jarrett ascende ao estatuto de quase estrela pop. Os snobes do jazz torcem o nariz ao plebeísmo do sucesso planetário. As pessoas decentes aplaudem a democratização do bom gosto (uma aristocracia para todos, como no poema de Sophia). Mais consensual é a sua reputação enquanto o melhor pianista de jazz da sua geração, nunca traída ao longo de décadas. A magia daquela noite, porém, não mais foi repetida.