Julia Jacklin é a prova de que meninas de colarinho rendilhado e risco ao meio, de alma doce e sensível, podem fazer rock. Não só podem, como o fazem bem e merecem todo o espaço para o fazer ouvir.
Se vemos uma evolução clara entre as crises existenciais do seu primeiro álbum e a tentativa de recuperar a autoconfiança que se perdeu pelo meio, no segundo, em PRE PLEASURE Jacklin está crescida e começa a compreender de onde vêm as suas dúvidas, numa tentativa de as resolver. A questão é que, ao fim de três discos, começamos a perceber que, talvez, os nossos problemas não tenham fim – apenas conseguem fazer-nos mudar de perspectiva. Em vez de ser composto numa guitarra, como ultimamente, PRE PLEASURE foi escrito num teclado e gravado em Montereal, com a co-produção de Marcus Paquin (produtor de The National, The Weather Station e Arcade Fire).
“This song is a pop song”, anunciou Julia antes de começar a cantar “Lydia Wears A Cross” no concerto que deu em Lisboa, no primeiro dia de dezembro. É a música que abre o álbum, e também aquela que estabelece o seu tom. Um teclado pausado intercala uma batida esfumada, constante. Como é comum na obra de Jacklin, biográfica, o instrumental é minimalista, para dar todo o espaço que as letras pedem. A cantautora australiana cresceu no seio de uma educação católica restritiva e foi ao chegar à idade adulta que começou a questionar a performatividade da religião, à volta da qual viu a sua infância ser moldada. Se aos 7 anos não encontrava outra razão para rezar se não pela Princesa Diana, aos 32 escreve uma música para se tentar libertar da culpa que sentia ao começar a ser céptica da sua crença, porque, como diz, a religião não é só danças e canções. Esta culpa também está muito presente em “Ignore Tenderness”, onde se expõe o lado da educação católica que condena o prazer e que repreende a sexualidade. Julia até pode estar livre dessa doutrinação, agora, mas não se consegue libertar do sentimento de transgressão que a acompanha sempre. Ao longo da letra, vão sendo repetidas as ordens que interiorizou, como “Strong but willing to be saved / Ignore the tenderness you crave”.
O beat suave e a guitarra que vai compondo a melodia de “Love, Try Not To Let Go” não querem roubar a atenção da voz leve de Jacklin, que canta sobre o conforto de casa, que sente distante. Quando as histórias se tornam memórias, definitivamente passadas, vive-se o medo da desconexão – e quando esta se refere a casa, ao nosso centro, teme-se a perda do que já se foi. As palavras “try not to let go” fazem-se ouvir violenta e incessantemente, numa tentativa de agarrar o que parece ir escapando sem querer. Num tom muito mais delicado, e quase que como um throwback aos suspiros do primeiro álbum, Jacklin permite-nos acesso à relação distante que tem com a mãe, em “Less Of A Stranger”.
Tal como esta última música, de poucos acordes é feita “Magic”, sendo que mais do que isso também ficaria em excesso. Discutindo uma vez mais o poder que tão facilmente se retira a uma mulher na sua vida sexual, é sobre a força de vontade de não querer deixar os traumas ganhar e sobre a coragem que se tem de ter para se ser gentil com o corpo, com a mente e, sobretudo, com a intimidade. Porque, por mais que desse jeito, a intimidade não é, nem pode ser, sobre força de vontade.
Se os relatos pessoais são momentaneamente interrompidos com “Moviegoers”, em que podemos refletir sobre a necessidade que temos de nos relacionarmos através da arte e provar que somos tão melhores que toda a gente, as questões existencialistas atingem o seu pico em “I Was Neon”. É um hino rock de letra engraçada, em que Julia experimenta a outridade, confessando repetidamente “Am I gonna loose myself again? / I quite like the person that I am”. Estando muito convicta de quem era e do que queria para si até agora, começou a duvidar se isso transparecia igualmente para os outros, para os que a viam de fora. Se esta for uma preocupação séria, inevitavelmente leva a que se mergulhe demasiadamente na própria identidade. É comum viver-se num conflito entre saber-se quem se é e isso corresponder à visão que se tem de si.
Por muitas guerras que tenhamos com nós próprios, nada impede que transbordemos amor por quem nos rodeia. “Too In Love To Die” é uma queridíssima carta de amor, uma prova de honestidade acima de floreados, sobre a sua poderosa componente salva-vidas. Mas também é possível fazer-se rock em nome do amor sensível. A guitarra eléctrica regressa para “Be Careful With Yourself” e pede cuidado à pessoa amada, parte desta equipa que tem de se manter forte e longeva. “So I’m just asking politely if you’d just try and be careful with yourself”, diz a letra, depois de pedir também que cessem os hábitos de fumador (quiçá, num piscar de olhos a Car Seat Headrest).
“End Of A Friendship”, a última faixa do álbum, é uma bela conclusão deste novo mergulho que pudemos dar no mar de ideias diversas que boiam na mente de Julia. Temos tudo aqui: violinos harmoniosos e otimistas, mesmo que complementando a letra sobre o fim de uma amizade; descrições cénicas simples e pouco detalhadas, mas que nos transportam na perfeição para as conversas que sabemos estarem por detrás da música; uma guitarra que aparece para não nos esquecermos de que é rock que ela faz e de que é assim que exterioriza a sua confusão; sinceridade e companhia, porque Jacklin sabe que, no fundo, através da sua música ficamos todos amigos.
Julia Jacklin oferece-nos a sua descoberta de que até no caos está tudo bem. Com os anos, abraçou com carinho a sua eu passada, sem nunca perder o seu lado confessional e sincero de observação exterior das suas ansiedades interiores. Aceitou o desconforto que está em perceber-se que ainda não é aos 30 que a mente pára de correr em todas as direções. PRE PLEASURE tem muitas cores, muito colo e muita luta em simultâneo e, sobretudo, tem muita juventude e tudo o que vem com ela. Julia Jacklin é a prova de que meninas de colarinho rendilhado e risco ao meio, de alma doce e sensível, podem fazer rock. Não só podem, como o fazem bem e merecem todo o espaço para o fazer ouvir.