For the Roses é um belíssimo meio caminho entre a voz-piano de Blue e as amarras soltadas nos discos seguintes – com uma capacidade de olhar para dentro, cantar e poetizar emoções universais que poucos músicos, cantores ou escritores tiveram na história.
Não deve ter sido fácil, fazer um disco depois de Blue. Mas somente um ano depois de um álbum em que Joni Mitchell se expunha ao piano, cantando as dores, os encontros e os desencontros da sua vida, sentindo-se como “o envolvente de celofane num maço de cigarros”, tão “sensível e delicada que se alguém olhasse para mim, explodia a chorar”? Um só ano depois de poetizar de forma tão bela e crua a sua vida – em estupendas canções – que Kris Kristofferson lhe pediu para “por favor” guardar qualquer coisa para si? Eis o desafio para um génio.
Ouvindo Blue (1971), é difícil imaginar que a quem quer que fosse o autor daquelas canções não haveria de suceder um bloqueio criativo, o síndrome da página em branco, a dificuldade de escrever novos versos depois de ter escrito e gravado canções tão “definitivas”. A canadiana, nascida Roberta Joan Anderson quase 30 anos antes, na província de Alberta, no Canadá, não perdeu tempo, porém. E em novembro do ano seguinte revelava este For the Roses, o seu primeiro disco na editora Asylum, fundada um ano antes pela mão de David Geffen.
Parte daquela que é indiscutivelmente a década de ouro na produção musical de Joni – ainda que em quase todas as décadas que se seguiram seja possível encontrar bons discos, como Wild Things Run Fast (1982) ou Night Ride Home (1991) -, For the Roses é um álbum que ajuda a explicar porque Joni Mitchell é não apenas uma das grandes escritoras de canções da música popular (independentemente do género, basta ouvir-lhe atentamente os versos, as melodias e a voz) como é a figura feminina mais importante de uma música popular reflexiva, serena, profunda e íntima. Dúvidas? Encontrem uma escritora de canções de relevo dos últimos anos – de The Weather Station a Weyes Blood, de Laura Marling a Fiona Apple – que não tenha tido o seu nome mais ou menos subtilmente associado a Joni.
Eis um álbum que prova na perfeição que o que se escrevia por aqueles tempos no Los Angeles Time, precisamente a propósito deste For The Roses, não envelheceu mal: “Há uma qualidade particular nos álbuns de Miss Mitchell: cada um tem uma forma de crescer e tornar-se mais pessoal e impressionante à medida que o tempo passa. Algo que faz com que os seus novos álbuns pareçam por vezes desiludir até te familiarizares tanto com os novos quanto com os anteriores”.
Continuavam a estar por aqui, é claro, as referências relativamente explícitas a pessoas próximas e relações anteriores – neste caso, e em particular, à anterior relação com o músico James Taylor, terminada no ano anterior, e à relação deste com a heroína (oiça-se “Cold Blue Steel” and “Sweet Fire”). Mas a escrita tornava-se cada vez mais densa, metafórica, aproximando-se mais de uma visão exterior do que de um olhar interior. Tudo isso se acentuaria mais tarde.
É claro que não era o “gossip” – que a fizera deixar de ter vontade de dar entrevistas, e ter dificuldade em tocar velhas canções em palco – que tornava Joni Mitchell uma autora maior; era a forma como, contando e cantando a sua vida emocional, contava poeticamente também as de todos nós, humanos, todas as nossas dores e desamores, conquistas e decepções, perdas e sonhos.
Há canções que aqui se destacam. A de maior sucesso é a extraordinária “You Turn Me On, I’m a Radio”, de um delicioso sarcasmo, escrita a pensar no pedido da editora para que compusesse e gravasse um tema que soasse bem às rádios. Mas há muito mais a reter.
À segunda faixa, chega a primeira canção de gabarito Joni, “Cold Blue Steel and Sweet Fire”, poesia pura musicada e uma ótima linha de guitarra. À época, encantou a crítica. Hoje, passado algum tempo, talvez “Lesson in Survival” tenha envelhecido ainda melhor, a voz como uma montanha russa de subidas e descidas (delicadas) de emoções, uma canção de recolhimento emocionante. Na seguinte, “Let the Wind Carry Me”, aquela voz de quem não se esforça, de quem canta das entranhas e sabe o peso das palavras – com uma instrumentação e harmonias (até vocais) já mais complexas a acompanhar o piano – volta a conquistar.
A canção que dá título ao álbum, sexta faixa do disco, é mais um bom momento, mas tudo cresce na ponta final: temos para nós que a sequência formada pelos últimos quatro temas, a já referida “You Turn Me On, I’m a Radio”, “Blonde in the Bleachers”, “Woman of Heart and Mind” e “Judgment of the Moon and Stars (Ludwig’s Tune)”, não está distante do ponto mais alto que a música popular pode chegar. A experimentação maior, o flirt com a exploração sónica e jazzística e a vontade de testar os limites mais formais e melódicos da canção popular chegariam nos discos seguintes, mas For the Roses é um belíssimo meio caminho entre a voz-piano de Blue e as amarras soltadas nos discos seguintes. Com uma capacidade de olhar para dentro, cantar e poetizar com mestria o que nos é comum que poucos músicos, cantores ou escritores lograram na história.