Ao seu nono disco de estúdio, Joni Mitchell trocou as voltas a muita gente, apresentando-nos uma obra-prima que talvez poucos aceitem como tal. Don Juan’s Reckless Daughter é um disco aventuroso, um disco que se atreve a ser tão belo quanto experimental.
Estávamos nos finais dos anos 70 do século passado, e Joni Mitchell era senhora do seu domínio. Estaria, muito provavelmente, no topo da sua carreira até ao momento. Repetir fórmulas antigas seria garantia de sucesso absoluto. No entanto, o que fez a menina Roberta Joan Anderson? Exatamente o contrário do que se esperaria, entregando ao mundo Don Juan’s Reckless Daughter, um álbum bastante experimentalista e, ainda por cima, em dose dupla. Saiu a treze de dezembro de 1977 e, estamos em crer, não terá sido o presente de Natal pretendido por muitos dos seus fãs. A crítica, ou pelo menos alguma boa parte dela, olhou-o de lado, tentando perceber o que nele vinha. Para nós, o que lá se encontra é bastante simples de entender e resumir: ele é o resultado de uma mais ou menos longa história de amor entre Joni Mitchell e alguns dos músicos da mítica banda de jazz Weather Report, nomeadamente Jaco Pastorius, Wayne Shorter, Don Alias e Airto Moreira. Com uma turma dessas, pode-se esperar tudo, não é verdade? Pois sim, mas talvez Don Juan’s Reckless Daughter não fosse o que se esperava do nono álbum da canadiana. Ainda bem, dizemos nós.
Na primeira face do primeiro élepê, três faixas apenas: “Overture – Cotton Avenue”, “Talk To Me” e “Jericho”. Como abertura, é quase irrepreensível. A faixa de abertura é mágica, apetecendo que não tenha fim, apesar dos seus mais de seis minutos e meio de duração. E o que dizer do baixo de Pastorius, não só aqui mas em todo o disco? Um primor, valendo boa parte do trabalho. E quando Joni Mitchell começa a cantar, o groove é tremendo. “Talk To Me” é Mitchell já mais reconhecível, digamos assim, com guitarras sempre presentes, um tema bonito com trinados de galinhas pela voz da cantora. “Jericho” segue um pouco o caminho da anterior, embora mais serena, mais contemplativa, com bonitas variantes de tom na voz de Mitchell.
Virando-se o disco, uma faixa apenas, a maravilhosa “Paprika Plains”. Ouve-se como se tivesse a duração de uma vulgar canção, mas tem mais de dezasseis minutos de comprimento. O piano, a voz, tudo é um longo regalo, com alguns pequenos sobressaltos pelo meio, contrapontos ideais ao lento desaguar do tema.
Pegando na segunda rodela, a primeira metade é ocupada com “Otis and Marlena”, “The Tenth World” e “Dreameland”. Os três temas combinam na perfeição, sem que se fundam em coincidências ou estridências semelhantes, uma vez que são bem distintos, todos eles. Aqui, mais do que em todo o álbum, é a voz de Joni Mitchell que sobressai. A voz e o que canta. “Otis and Marlena” poderia ser um conto, digno da melhor pena contista das Américas do Norte, mas é uma canção apenas, fundindo-se através de percursões várias com a faixa seguinte, fazendo-nos transportar ao continente africano. Tudo perfeito. Depois, vem “Dreamland”, e o título da faixa diz muito do que nela podemos ouvir. Um clássico, sem dúvida, ainda marcado por batuques e afins. Gostamos de pensar que Paul Simon gostaria de ter feito este tema, nos idos tempos de Graceland (1986) e de The Rhythm of The Saints (1990).
A última fatia de som começa com a faixa que dá título ao álbum, a elegante “Don Juan’s Reckless Daughter”, mais convencional do que todas as outras canções que no disco se escutam. “Off Night Backstreet” passa num ápice e o fim acontece com “The Silky Veils of Ardor”, parecendo cumprir a função de um longo lamento pelo fecho próximo. É uma bonita maneira de colocar um ponto final a um álbum que levantou muitas reticências, mas que, quase quarenta e seis anos depois, continuamos a ouvi-lo de forma totalmente exclamativa!
No meio de tantos e tão belos trabalhos de Joni Mitchel, talvez seja este o disco em que mais vezes pousamos a agulha no vinil, para que o fascínio sonoro que nele se encerra, se repita e repita e repita uma vez mais.
* Uma última nota para a capa de Don Juan’s Reckless Daughter. As três imagens que nela figuram são da própria Joni Mitchell, e não apenas aquela em que está facilmente reconhecível. A Joni Mitchell negra é o seu alter ego Art Nouveau, que a cantora terá criado numa festa de Halloween, alguns anos antes da publicação do presente disco.