O quarto álbum de Joni Mitchell, Blue, é belo, triste e honesto. Como a chuva a cair numa tarde de Inverno.
Quando Joni Mitchell mostrou as suas canções a Kris Kristoferson, este desabafou: “caramba, Joni, guarda qualquer coisa para ti”. Blue não é bem um disco, é mais um aquário, os seus sentimentos como peixes azuis (verdes, amarelos) nadando à vista de todos. Apenas uma parede de vidro finíssima separa o mundo interior de Mitchell dos nossos ávidos olhos (ouvidos, pele). As suas bonitas melodias quase não têm roupa por cima: uma diáfana guitarra, um límpido piano, o esquisitíssimo saltério dos Apalaches (tipo uma viola estragada mas que soa fixe nas mãos de Joni). Quem quiser ser vulgar, espreita pela fechadura: olha aqui a gaja enrolada com o Cohen, olha ali a vadia na cama com o Nash, olha acolá a rameira dormindo com o Taylor. Porém, olhar para Blue como quem folheia a revista Maria seria tão grosseiro como alguém se divertir sozinho contemplando a Vénus de Milo.
Em Blue não vemos nada, somos vistos. O deslumbramento é nosso, o desamparo também. Não crescemos nos rios gelados do Canadá mas as saudades da infância pertencem-nos, desejos impossíveis de evasão: todos já fomos tristes e egoístas, todos já fizemos chorar, que bom seria patinar no gelo da nossa meninice (fugir, voar). Falamos de “River”, é claro, uma canção de natal tristíssima, muito antes dos clássicos natalício-depressivos de Tom Waits e dos Pogues tornarem o Natal mais suportável. “Jingle Bells” não é apenas citada, é corrompida, transmutando a sua alegria pueril em pungente melancolia. Forma e conteúdo dançando sempre juntos: quando canta “I would teach my feet to fly” a sua voz voa também, como um pequeno pássaro assustado riscando o azul do céu.
Blue não é bem música, é mais pintura, leve como uma aguarela, translúcida como um vitral (à mais leve brisa tudo se desfaz). Mas Joni não pinta apenas (isso seria banal), cria também as suas próprias tintas, inventando novas afinações de guitarra, forjando os seus próprios acordes (se a guitarra não existisse, Joni inventá-la-ia, pregando seis atacadores à sua alma).
As canções de Blue não são bem canções, são mais cinema, tal é o seu poder de evocar imagens, ambientes, sensações. Na curta-metragem “The Last Time I Saw Richard”, parece que estamos também lá nós, sentados no balcão escuro, uma última moeda na jukebox, a bartender de laço e meias rendilhadas a despachar-nos porque está na hora do fecho, ele (o pragmático) maldizendo o romantismo dela, ela (a sonhadora) menosprezando o cinzentismo dele, os dois, afinal, unidos na mesma amargura.
Pessimista? Estamos em 1971, são os ares do tempo. Se no disco anterior Joni cantava o florido “Woodstock”, agora, depois do horror pós-Manson-Altamont, é tempo de fazer o luto pelo lindo sonho. Por isso, em “California”, Mitchell desabafa: “sentado num banco de jardim em Paris / lendo as notícias / não dão uma chance à paz / era só um sonho nosso”. Blue é o dia seguinte, quando a ressaca vem, e um fel amarguísimo sobe à boca.