O quinto disco dos Glockenwise, Gótico Português, continua a toada indie de Plástico, mas agora com um maior arrojo experimental. Mais uma belíssima rodela dos minhotos.
Os Glockenwise começam como uma banda de garage punk, enxertando a Detroit de 1969 na Londres de 1977, com uma sensibilidade pop sempre aguçada (Building Waves, 2011; Leeches, 2013; Heat, 2015). Reinventam-se com Plástico, de 2018, cantando em português e trocando o primitivismo “apunkalhado” por um indie rock muito “oitenteiro” (as cassetes dos Smiths sempre a rodar no walkman amarelo). Eis que lançam agora o belíssimo Gótico Português, evolução na continuidade com Plástico, também na língua materna mas com mais portugalidade, também em “indiês” mas mais experimental.
Comecemos pela portugalidade. Lembremos que os Glockenwise são de Barcelos e que passaram os três primeiros discos a quererem fugir de lá (demasiado pequena para o tamanho dos seus sonhos). Entretanto aconteceu uma coisa lamentável chamada maturidade, que os levou a um olhar mais apaziguado, e até ternurento, para com as suas raízes.
Cantam agora na língua de Camilo Pessanha (roubando-lhe o poema “Água Morrente” e tudo), com um sotaque orgulhosamente minhoto. O título – o gótico é o nosso e o de mais ninguém! – e a capa – esculturas naïfs de um grupo folclórico, algures em Santa Maria de Lamas – são também descaradamente lusitanos. Os três excertos de entrevistas a Rosa Ramalho, com a candura e o humor que a caracterizam, são ainda mais especiais, supomos, porque a grande ceramista popular era de uma aldeia perto de Barcelos (Rosa era punk e não o sabia).
E, last but not the least, há salpicos de portugalidade na própria música. Dizemos salpicos porque os Glockenwise continuam a ser anglo-saxónicos até à medula: as teclas à “Love Will Tear Us Apart”, os elegantes arpejos de guitarra à R.E.M, fase Murmur, e a secção rítmica minimal e robótica, quase pós-punk, não deixam grandes dúvidas. Porém, aqui e ali, qualquer coisa de folclore português extravasa para a própria voz (veja-se o caso de “Margem e de “Água Morrente”, com a sua entoação quase fadista). Não são os Gaiteiros de Lisboa lá do sítio – calma! – mas têm agora um orgulho indisfarçável das suas próprias origens, o que só lhes fica bem.
Mas, atenção, a portugalidade de Gótico Português não é a maior surpresa do disco, longe disso. É a sua sensibilidade menos imediatista que sobressai. É preciso recordar que mesmo na fase mais “garageira” da banda, dos três primeiros discos, havia uma concisão e um melodismo inegavelmente pop. Plástico sobe a parada, com ainda mais refrões orelhudos para trautear no chuveiro. Este caminho é interrompido em Gótico Português, com temas mais longos e estruturas mais complicadas, que exigem mais investimento do ouvinte (com retorno garantido, descansem; caso contrário, devolvemos o dinheiro). Veja-se “Água Morrente”, manipulando habilmente o feedback para criar uma atmosfera ansiosa e perturbante. Ou então “Margem”, com o seu epílogo à Interpol, arrastado, sombrio, acumulando tensão, levando a canção até aos quase 7 minutos. “Vida Vã” extravasa mesmo o sétimo minuto, em modo “olha o sapato” à My Bloody Valentine (a melodia soterrada na neblina de guitarras, sonhadora e escapista como uma miúda triste à janela).
Continuamos a achar que Plástico é a obra-prima dos Glockenwise. Mas Gótico Português não lhe fica muito atrás. É que ganha muitos pontos pela ousadia formal, crescendo a cada nova audição. Para a semana, falamos, quem saberá…