O terceiro álbum de Curtis Mayfield, Super Fly, não é apenas uma banda-sonora incrível. É um instantâneo precioso de uma era longínqua.
Curtis Mayfield anda nas lides do R&B desde sempre. Nos anos 50, já integrava os Impressions, encantando o mundo com o seu falsete de ouro e composições a condizer. Curtis, porém, sempre foi grande demais para ser apenas um terço de um grupo de R&B vocal. De maneira que ninguém fica muito surpreendido quando em 1970 lança o seu primeiro disco a solo – Curtis. Aproveita a ocasião para se reinventar, trocando a candura quase doo-wop de outrora por uma modernidade funky, com salpicos de soul psicadélico (Sly Stone, Isaac Hayes e Temptations-fase-Cloud-Nine sempre a girar na sua jukebox). A soul está a mudar. O fuzz da guitarra, o pedal wah-wah e as congas à Santana são as suas novas – e garridas – cores.
O mesmo funk urbano e sofisticado atravessa Roots (1971) e culmina em Super Fly (1972), banda-sonora do filme com esse nome, e a sua consensual obra-prima. O clássico blaxploitation, sobre um dealer do Harlem, tem um subtexto ambíguo, entre a glamorização gangsta e o olhar cínico e amargo. Curtis joga pelo seguro, recusando a ambiguidade do filme, denunciando abertamente as drogas e o crime (vistos como obstáculos à emancipação negra). Revela, porém, uma terna empatia com as suas personagens (apenas peões num tabuleiro viciado à partida).
Não foi Curtis que inventou a associação entre o filme blaxploitation e a banda-sonora funky da praxe. Isaac Hayes já tinha encetado a fórmula em Shaft, do ano anterior. Porém, com excepção do tema-título – enorme! -, todas as demais faixas são instrumentais, funcionando bem na tela, mas menos bem no gira-discos. Super Fly, com as suas canções e letras esmeradas, sobe o patamar do jogo, passando a ser a bitola a partir do qual as demais bandas-sonoras blaxploitation seriam medidas.
Super Fly grita “primeira metade dos anos 70!” por todos os poros. O falsete aveludado, as percussões latinas, as orquestrações luxuriantes, o ansioso wah-wah de “Junkie Chase”, tudo é uma polaroid de uma época precisa, feita de camisolas de gola alta, bigodes míticos, genéricos com letras estilizadas a amarelo, perseguições de carros, miúdas giras tipo revista Gina, tudo captado num rolo fotográfico – hoje, baço – comprado no Pão de Açúcar de Alcântara. Quantos discos definem um tempo? Uma carrada deles. Quantos o espelham com este nível de classe? Contam-se pelos dedos de uma mão…