O segundo e melhor disco dos Ena Pá 2000, És Muita Linda, é de uma olímpica e bem-vinda parvoíce.
No primeiro disco, Projecto Ena Pá 2000 Project!, de 1991 – revisto e aumentado em Enapália 2000, de 1992 -, os Ena Pá já tinham anunciado ao que vinham: sexo, parvoíce e rock’n’roll. Porém, salvo algumas honrosas excepções, como o hino “Marilú”, a estreia não levara ainda “até ao fundo” a infâmia prometida. O segundo álbum, És Muita Linda, de 1994, veio corrigir essa “tibieza” original, derrubando com estrondo as últimas réstias de pudor que ainda sobejavam.
A começar logo pela capa pornográfica, com uma fotografia roubada à mítica – e saudosa – revista Gina. Continuando pelo título das canções: “Masturbação” e “Paneleiro” não levam ninguém ao engano. Tudo confirmado pelo conteúdo propriamente dito, mais obsceno – veja-se a porno star bestialista de “Puta” ou os gemidos lascivos de “Fucking Time” – e mais nonsense, reinventando estupidamente a própria língua portuguesa, como a “pice” para rimar com “Alice” ou o coração que “palputa” em “Puta”. Foste, Mia Couto, és um menino!
Nos anos 80, quando Manuel João Vieira integrava, na Faculdade de Belas Artes, o colectivo “Homeostética”, já existia o embrião dos Ena Pá (formados em 1984), uma espécie de braço musical do movimento, concebido com o objectivo – dadaísta? – de ser a pior banda do mundo, não só no conceito, como na própria música. Acontece que este desígnio só foi cumprido nas letras e encenações alarves, ao pé dos quais o pimba – então emergente – parecia fino e educado. Na parte musical, os Ena Pá sempre foram irrepreensíveis: intérpretes exímios – o amor de toda a banda pelo prog já foi, inclusive, confessado -, com arranjos cuidados, melodias memoráveis e uma voz cheia e possante (algures no multiverso há um Vieira abstémio que canta ópera, estamos disso certos).
Se esta qualidade se estende a toda a sua discografia – menos O Álbum Bronco, vá -, o auge criativo surge logo com És Muita Linda. O disco é longuíssimo – setenta e três minutos! – mas é tão consistente e interessante que nem damos pelo tempo a passar. Dos vinte temas, dezanove são clássicos imprescindíveis (só “Fucking Time” é um pouco irritante, confessamos).
E não falamos apenas das melodias bonitas e inventivas, como “Semi-Tango (a Saga de Luís Mendonça)”, “Perversa Adolescente” e “Dona” (a mais bela ode poética à genitália feminina escrita na língua de Camões). Pensamos também nos sofisticados arranjos. Veja-se o contraponto em “Rap Alentejano”, casando habilmente duas melodias independentes: o groove de base e o cante alentejano interpretado por Vitorino e Janita, como quem mistura cozido à portuguesa com bacalhau à brás. “A Titi Fez-me Teté” faz um truque parecido, sobrepondo um rockabilly atrasado mental com a leitura séria de um ensaio sobre arte. Resultado: cócegas no cérebro.
Muitos dos temas são pastiches – em forma de paródia – de uma série de estilos musicais, como o rockabilly (“Alice”), o funk (“Vida de Cão”), o hip hop (“Rap Alentejano”), o tango (“Semi-Tango”), a balada romântica kitsch e sentimental (“Nunca 1”), a música africana (“Marisco”) e o heavy rock (“Bacamarte”). Para os Ena Pá, a história da pop é uma fonte inesgotável de matéria prima para escarnecer de tudo e de todos.
Filhos do Frank Zappa a esse respeito, como também no humor absurdo e na libertinagem de expressão. É verdade que Zappa foi mais vocal na defesa de uma afirmação artística totalmente livre mas a mesma pulsão está sempre implícita nos Ena Pá. És Muita Linda faz disso prova, ultrapassando novas barreiras do bom senso e do bom gosto, como o sexo com menores em “Perversa Adolescente” e o incesto em “A Titi Fez-me Tété”. Ouch…
És Muita Linda nunca vendeu muitos discos. Talvez porque as rádios se recusassem a passá-lo (para não fazer dói-dói nos ouvintes, coitadinhos). Mas a malta conhecia as canções. Primeiro, porque o mesmo exemplar circulava por muitas casas, sendo copiado para muitas cassetes. Segundo, porque faziam então muitos concertos, especialmente em festas académicas. O pico de popularidade dos Ena Pá aconteceu justamente na primeira metade dos anos 90, quando a geração X se fez adolescente.
Talvez só pudesse acontecer então. Para os nossos pais, mais sisudos e respeitosos, tudo aquilo não passa de um disparate pegado. Para os nossos filhos, com a sua tolerância zero ao politicamente incorrecto, canções como “Paneleiro” são atentados vis aos direitos humanos. Só a nossa geração – leve e irónica, sem levar nada demasiado a sério, nem sequer as nossas (muitas!) contradições – é que abraça a parvoíce absoluta de uma banda como os Ena Pá.
Isso leva-nos à difícil questão, à qual temos – ardilosamente – procurado evitar: qual é a natureza do chauvinismo enapaliano? Pedra maldosa atirada ao outro? Ou uma espécie de confissão do nosso inconsciente colectivo? Inclinamo-nos para a hipótese do embaraçoso espelho. Zé Povinho revisited. Bordalo Pinheiro pós-interrail. Portugal profundo no Chiado. Quim Barreiros para intelectuais. Não se pode ser português pela metade…
O que é interessante em És Muita Linda – e, em rigor, em tudo o que fazem – é a tensão permanente entre a tontice manifesta e a inteligência latente. Manuel João Vieira é um homem culto e arguto, fingindo que é um troglodita, e oitenta por cento do apelo dos Ena Pá decorre desta contradição. Escondida no meio da patetice generalizada, há mesmo alguma crítica social, como em “Vida de Cão” e “Rap Alentejano”. Mas nem era preciso. A parvoíce é uma arma em si mesma, talvez a única possível num tempo pós-ideológico. É o próprio Vieira que numa entrevista o sugere: “é esse desmoronar das utopias que leva ao surgimento de grupos como os Ena Pá 2000 ou os Irmãos Catita, porque a subversão começa a ser só possível através do humor.” Sejamos parvos, sempre, senão estamos perdidos…