1992. O ano em que este “Daqui ninguém sai vivo” é editado em Portugal, pela estimável Assírio & Alvim, na mesma colecção fantástica que trouxe ao público nacional livros, em português, sobre Tom Waits, Lou Reed, Patti Smith e muitos, muitos outros. A colecção chamava-se, significativamente…”Rei Lagarto”. Tudo dito. O título do livro, claro, é retirado da letra de “Five to one”, um dos muitos clássicos da banda.
1992, um ano depois da estreia de “The Doors”, de Oliver Stone, que espalhou a febre Morrison como fogo em palha seca. Um timing perfeito, portanto, para tornar esta uma obra incontornável entre a adolescência da época, como era o meu caso.
A explicação para o impacto deste livro é relativamente simples: era uma época pré-Fnac, pré-Internet, pré-Amazon. Os produtos culturais ao nosso alcance eram os que existiam nas lojas, físicas, e em casa de alguém que quisesse emprestar. Assim, em plena euforia de revivalismo The Doors (pelo menos na minha escola e entre o meu grupo de amigos), haver um livro assim, escrito em português, disponível em todo o lado, era um achado tremendo.
O livro em si é bastante forte. Ao contrário do filme de Oliver Stone, limitado a menos de duas horas de duração, “Daqui ninguém sai vivo” demonstra, naturalmente, a vantagem da palavra escrita. Espaço para tudo, uma organização com tempo, apartes. Se o filme praticamente começa com o início da banda, o livro vai, e bem, muito atrás: à família de Jim Morrison (descobrir que ele tinha um irmão e uma irmã foi surpreendente!), à relação com os pais, à educação, aos primeiros sintomas de rebeldia. Se o filme era um desfile de episódios e de estilos, o livro era a procura de uma causa, de uma raiz, de uma explicação. Essa era a sua força. Em termos de análise musical, de origem do som Doors, por exemplo, poucas respostas nos eram dadas. O livro era vendido como a biografia de Jim Morrison e, embora fosse mais do que isso, não era um tratado musical da banda. E, admitamos, nessa altura era isso que queríamos, saber mais sobre eles, nomeadamente sobre Jim, aquele que todos os putos fixes queriam ser quando crescessem. A música já nós a íamos tendo, em cassetes que se reproduziam ou nos raros cd a que conseguíamos deitar a unha. O livro dava o resto, e trazia fotos, o que era importante nessa pré-história antes do Google Images e num tempo em que toda a gente a quem eu dava o bom dia tinha as paredes do quarto forradas a posters. Conheço dezenas de pessoas que o leram. Andou de mão em mão. Eu próprio o emprestei a muita gente e, quando o tinha comigo, andava sempre com ele na mochila da escola. Olho para ele agora, a desfazer-se. É assim que gosto dos livros, vividos. E poucos tenho que tenham vivido tanto quanto este, poucos tenho que tenham feito a diferença para tantos putos a gritar por uma diferença.
Folheando-o de novo, agora, vejo as falhas do livro que nunca vi originalmente. A tradução parece um bocadito parola (nem falo das letras, que soam sempre necessariamente parolas quando traduzidas); os autores voltam sempre a um exercício que explora o risco latente na vida de Morrison (há uns 10 episódios diferentes de penduranços de janelas e coisas afins); há uma certa insistência num bullshit metafísico que também infiltrou o filme de Stone (e como eu gostava disso na altura); e, obviamente, um elogio permanente face a Jim e aos Doors. Este livro não é um relato desapaixonado ou jornalístico. É parcial, é apaixonado, é até um pouco confrangedor no amor que os autores denotam pelo seu sujeito. Mas é, de facto, muito completo e bem pesquisado.
Para mim, teve outra importância absolutamente fundamental: ao falarem de Jim enquanto jovem, os autores deram-me pistas inestimáveis acerca do seu percurso e, sobretudo, da sua alimentação intelectual. Foi neste livro que vi mencionado, pela primeira vez, nomes como Nietzsche, Rimbaud e, sobretudo, Jack Kerouac. O meu apetite pela leitura estava a tornar-se voraz nesta altura e foi em “Daqui ninguém sai vivo” que fui buscar as pistas para as buscas seguintes. Mal sabia eu que com Kerouac e com o seu clássico “On the Road” estaria a abrir uma via de descoberta literária que dura ainda hoje. A partir daquelas visitas à biblioteca pública de Oeiras, o meu caminho estava traçado: Jim levou-me a Kerouac; Kerouac levou-me a Ginsberg, a Burroughs; estes a Henry Miller; Miller a Bukowski; Bukowski a John Fante e por aí fora. Um mundo. Um mundo maravilhoso cujas ramificações ainda hoje me trazem coisas novas e boas.
Há, com certeza, outros livros tão bons como este, acerca dos Doors, sobretudo em inglês. Agora, que o mundo está à distância de um click (e da carteira de cada um), talvez se encontre, com facilidade, trabalhos mais completos, mais exaustivos, mais bem escritos. Mas, comigo, este foi o livro mais marcante da minha vida, até à data em que lhe peguei.
Creio que estará indisponível nas lojas, até pela situação da Assírio & Alvim, mas é comum encontrar-se em alfarrabistas ou feiras do livro. Eu cá vou guardar a minha cópia, que já não aguenta muitas mais viagens. E quando as minhas filhas descobrirem os Doors e Jim Morrison, vou esticar a mão para a estante, com a antecipação de quem sabe o valor daquilo que está a oferecer.