Na noite de 27 de Julho de 1969 os Doors e os Led Zeppelin partilharam o mesmo palco num festival em Seattle. Se Deus existisse, e houvesse o mínimo sentido de justiça cósmica, eu teria estado lá. Cruelmente, nem sequer tinha nascido.
Pode parecer estranho mas na minha adolescência, mais do que os meus contemporâneos Guns e Nirvana, foram os velhos discos dos Led Zepp e dos Doors que mais giraram na minha aparelhagem. Mais Jim do que Jimmy porque os Doors sempre foram muito mais do que música, quase uma ateia religião. O universo, movido por um óbvio sentimento de culpa, fez questão de reparar alguns dos seus erros. No início dos anos 90, quando todos os putos da minha idade ouviam o lamentável Innuendo, eu atalhava caminho para a boa música devorando as cassetes do meu irmão mais velho. Por outro lado, tinha catorze anos quando o filme do Oliver Stone apareceu – o biopic que trouxe de novo a banda de Jim Morrison para o centro das atenções. Por fim, no oitavo ano, aterrou na minha turma um miúdo que partilhava comigo o mesmo ódio aos Roxette e a mesma paixão por música. Juntos ouvimos vezes sem conta uma cassete do meu irmão com um best of dos Doors e os dois não descansámos enquanto não comprámos todos os discos de originais. Olho agora com candura para o fanatismo do nosso culto adolescente. Sentíamos que os nossos discos sagrados nos elevavam perante os comuns dos mortais. Não perdoei ao meu amigo quando uma vez emprestou o Waiting for the Sun a um colega nosso que ouvia Celine Dion. Era uma traição.
Não vos vou falar de como todos os milímetros da parede do meu quarto estavam forrados com fotocópias de fotos dos Doors (e com um poster gigante do Jim oferecido pela minha prima que me estava sempre a cair em cima), ao ponto dos meus pais – boa gente mas alheios às bizarrias da cultura Pop – ficarem seriamente preocupados. Nada direi também em relação ao dia em que corri os estores do meu quarto, acendi uma vela e tripei ao som de “When The Music’s Over”. Muito menos farei qualquer referência àquela noite em que, regressados de um concerto de um amigo, saltei para cima de um carro – meio à Jim, meio à Val Kilmer – gritando que todos não passavam de “soldados de plástico numa guerra de lama”, e fugindo depois a sete pés quando o dono do carro me apanhou em flagrante parvoíce. O Altamont pediu-me um artigo de fundo sobre um dos grandes do rock, não a porra de um livro de memórias. Por isso cá vai. “Is everybody in? The ceremony is about to begin.”
Nenhuma história do psicadelismo estaria completa sem a referência aos Doors – o lado negro da coisa. Apareceram no momento certo (a louca segunda metade dos anos 60) e no sítio certo (Los Angeles era um dos epicentros do movimento hippie), tendo sido naquele caldo cultural (questionamento da moral conservadora, expansão da consciência através das drogas; oposição à guerra do Vietname) que se fizeram gente. Canções dos Doors como “Take it as it Comes” e “Indian Summer” espelham bem o fascínio da contracultura de então pelo longínquo oriente, da mesma maneira que “The End” e “When The Music’s Over” têm aquele sabor de viagem alucinogénia tão característico dos sixties. O próprio nome da banda foi roubado a um livro de Aldous Huxley sobre psicotrópicos: The Doors of Perception retrata a experiência de Huxley com mescalina. Na biografia de Jim Morrison Daqui ninguém sai vivo há uma história deliciosa que retrata melhor do que qualquer outra coisa o espírito do tempo. Jim não tinha aparecido no bar onde tocavam, obrigando o teclista Ray Manzarek a substituí-lo na voz. Os três estavam furiosos. No intervalo, o baterista John Densmore e o guitarrista Robby Krieger procuram o paradeiro de Jim nas tascas costumeiras. John está furibundo, insurgindo-se contra os irresponsáveis padrões de consumo de Jim: “Nunca tomei ácido mais do que uma vez por semana e Jim anda nessa todos os dias, pelo menos.” A conclusão é inevitável: para os loucos padrões da época, um tipo que só tomava alucinogénios semanalmente era uma menina.
Não obstante a matriz psicadélica comum, os Doors apresentam um imaginário bem distinto do das outras bandas de acid rock, muito graças à personalidade singular do seu frontman. Enquanto toda a gente na altura celebrava o amor e a natureza, falando sobre céus de marmelada, flores no cabelo e mulheres arco-íris, Jim escrevia sobre morte, incesto e viagens ao fim da noite. Desconfiado do optimismo e espírito comunitário dos hippies, Morrison preferia o lado lunar do psicadelismo, fazendo das bad trips a sua metáfora. Nenhuma canção é mais clara do que “Five to One” na sua demarcação em relação ao idealismo hippie. Estávamos em 1968, o flower power encontrava-se no seu apogeu, mas Jim profetizara já o seu fim: “Os teus dias de festa acabaram, a noite aproxima-se e as suas sombras crescem de dia para dia. Caminhas com uma flor na mão tentando dizer que ninguém te entende, trocando a tua casa por um punhado de tostões…” Infelizmente, Jim estava certo: não muito tempo depois o lindo sonho de uma geração acabou, com a rápida reconversão dos antigos hippies em cínicos yuppies.
Da mesma maneira, Jim distanciava-se dos demais lugares comuns do movimento hippie. Ao contrário dos outros elementos da banda (Manzarek conhecera Densmore em aulas de meditação transcendental, tendo sempre incenso a arder no seu órgão durante os concertos), Jim desprezava o esoterismo tão em voga nos anos sessenta. Na versão de “Roadhouse Blues” que ouvimos em American Prayer e Doors in Concert, encontramos o melhor exemplo da sua atitude crítica face ao misticismo. Jim começa a falar sobre o seu signo, despertando primeiro a cumplicidade de muitos espectadores, para depois os confrontar com o seu cepticismo: “De qualquer maneira, não acredito. Acho que é tudo uma grande treta. Mas digo-vos isto. Não sei o que vai acontecer mas quero ter os meus bons momentos antes desta merda ir toda pelos ares…”. Em “The Wasp – Texas radio and the big beat”, Morrison regressa ao mesmo tema num tom mais poético: “Nenhuma recompensa eterna perdoar-nos-á se desperdiçarmos agora o amanhecer”…
Mas contemos a história desde o princípio. Jim e Ray tinham sido colegas no curso de cinema da Universidade da Califórnia e encontraram-se por acaso em Venice Beach no verão de 65. Jim revela-lhe que tem um concerto de rock and roll a tocar na sua cabeça. Canta-lhe “Moonlight Drive” e Manzarek fica boquiaberto: nunca antes ouvira letras assim. Começam uma banda, que integra também os irmãos de Manzarek e John Densmore na bateria. Conseguem um contrato com a Columbia Records e chegam a gravar uma demo mas a editora depressa desiste deles. Desiludidos, os irmãos de Manzarek abandonam o barco. É aí que entra em cena o guitarrista Robby Krieger, colega de liceu de Densmore.
A formação anterior tinha sido um passo em falso. Só no momento em que Manzarek, Krieger, Densmore e Morrison estão juntos é que faz sentido passarmos um certificado de nascimento aos Doors. Por mais carisma que Morrison tivesse, não se subestime nunca a importância dos outros elementos na definição do som Doors. Era incrível a alquimia que nascia quando os quatro faziam música juntos, “poligamia sem sexo” como uma vez afirmou Densmore. As teclas de Manzarek dão aquele som circense-capa-do-strange-days tão característico da banda. Como Ray toca uma linha de baixo constante com a sua mão direita, Densmore fica liberto de marcar o ritmo, podendo explorar à vontade a sua inventividade jazzy. Krieger e Morrison escreviam as canções. O input criativo de Krieger era menor mas em compensação escreveu algumas das malhas mais catchy dos Doors:“Light My Fire”, “Love Me Two Times” e “Love Her Madly” têm a sua assinatura. Morrison não percebia patavina de música mas paradoxalmente foi sempre o principal motor criativo dos Doors, escrevendo a maior parte das canções. Era também ele o responsável por transcender as fronteiras do rock em direcção à poesia e ao teatro. Jim era o o xamã, aquele que conduzia os quatro para aquela região transcendente onde a música toca o infinito.
Em 1966, no momento em que os Beatles lançavam Revolver (a sua obra-prima), os Doors eram uns ilustres desconhecidos que tocavam num bar manhoso chamado London Fog, onde ninguém aparecia. A sorte mudou porém quando são convidados para o Whiskey a Go-Go, um prestigiado clube de rock na Sunset Boulevard que funcionou como rampa de lançamento de muitas bandas de L.A. (Love, Buffalo Springfield e Mothers of Invention, todos deram lá os seus primeiros passos). Em regra, os Doors abriam concertos para bandas então maiores como os Them (nessa altura os dois Morrison, Jim e Van, enfrascavam-se juntos, absolutamente convencidos que descendiam da mesma família irlandesa). Uma noite cantaram “The End” mas o sentido de humor do proprietário do Whiskey não era muito edipiano. Foram despedidos na mesma noite. As sementes estavam porém lançadas. Por recomendação de Arthur Lee (o frontman dos Love), o fundador da Elektra Records assistira antes a um concerto dos Doors e Jak Holzman gostara do órgão de Manzarek. Depois da má experiência com a Columbia Records, os Doors assinaram por fim com uma editora realmente interessada. E poucas semanas depois já estavam os quatro dentro do estúdio a gravar o seu primeiro álbum. Em 4 de Janeiro de 1967 The Doors, o filho primogénito, estava nas lojas. Para o grande público, “as portas da percepção” estavam por fim abertas.
Foi gravado em apenas 2 semanas. Toda a energia que os Doors traziam do Whiskey foi trazida intacta para o disco. O produtor Paul Rothchild fez questão de interferir o menos possível para não estragar esse feeling. É também o único álbum dos Doors em que a linha de baixo é tocada pelo órgão de Manzarek, como sucedia nos concertos. Por tudo isso, é o disco mais caracteristicamente Doors e a sua energia vibrante nunca mais foi inteiramente repetida. Estranhamente, a Elektra não percebeu logo o potencial comercial de “Light My Fire”, lançando como primeiro single o psicadélico “Break on Through”. Não obstante o cuidado que a editora teve em censurar a o verso “she gets high”, “Break on Through” nunca conseguiu passar do estatuto de pequeno êxito local. A Elektra não repetiu o erro, lançando “Light My Fire” como segundo single, numa versão radio friendly onde os brilhantes devaneios instrumentais de Ray Manzarek e John Densmore – dois dos momentos mais sublimes de toda a discografia dos Doors – são obscenamente amputados. Resultado: um sucesso estrondoso, chegando rapidamente a número um. De repente, os Doors tornaram-se a “next big thing”. Ao contrário dos Velvet Underground, que permaneceram sempre na obscuridade, os Doors conseguiram levar a sua visão lúgrube e bizarra até ao mainstream. Esse foi o seu legado.
Ainda o ano de 67 não tinha findado, já os Doors haviam lançado o seu segundo álbum: o brilhante Strange Days. Se as suas canções foram escritas na mesma altura do que as do primeiro, a forma de as abordar foi radicalmente diferente: menos bluesy e espontânea, mais sombria e sofisticada. Havia agora um importante quinto elemento: as próprias possibilidades de estúdio, agora maiores graças à duplicação do número de pistas de gravação (de quatro para oito). Manzarek aproveitou bem essa liberdade, experimentando todos os teclados que encontrou à mão. O talento de produção de Paul Rothchild fez o resto. É difícil de precisar a influência que este disco estranho e melancólico exerceu na história do rock mas certamente que o pós-punk dos Joy Division e dos Echo & the Bunnymen lhe devem muito (não foi à toa que os últimos revisitaram o soturno “People Are Strange”).
Em Julho de 68 sai do forno Waiting for the Sun, mais Pop e luminoso do que os primeiros discos mas também menos coeso e criativo. É a típica vítima do síndrome do terceiro álbum: o lote das canções antigas estava a esgotar-se, a banda estava sempre em digressão e era difícil arranjar tempo para Jim e Robby escreverem novas canções. Para ajudar à festa, um longo poema musicado de Jim chamado “Celebration of the Lizard”, considerado pelo produtor Paul Rothchild como comercialmente pouco apelativo, foi quase todo deitado fora (só sobrou a obsessiva e viciante “Not to Touch the Earth”). Tiveram então que usar as sobras do filão inicial (como “Summer’s Almost Gone”) e pela primeira vez escrever músicas à pressão no ambiente frio de um estúdio. Foram gravadas as primeiras canções menores dos Doors: “We Could be so Good Together” não é boa, nem má, antes pelo contrário; “Yes the River Knows” é a balada melosa que prenuncia a viragem kitsch de Soft Parade. Talvez seja porém o disco mais saboroso dos Doors. “Love Street” é puro algodão doce. O single “Hello, I Love You” é o chocolate roubado aos Kinks que chegou a número um. Waiting for the Sun vendeu mais do que o próprio disco de estreia. Não o estranhamos.
Em 1 de Março de 1969 dá-se o incidente em Miami, sendo Jim acusado de obscenidade. O establishment aproveita o escândalo para montar uma campanha de perseguição contra Morrison, no fundo o bode expiatório de um inimigo bem mais amplo: a contracultura juvenil que um pouco por todo o lado põe em causa a sua ordem conservadora. Dezenas de concertos dos Doors são cancelados, as canções são censuradas nas rádios, Jim pode ser preso a qualquer momento. O incidente de Miami marca claramente um antes e um depois na carreira dos Doors: antes eram os meninos bonitos da imprensa musical; depois, um alvo perigoso a abater.
Estamos em Julho de 69 e o azar persegue. Soft Parade, o primeiro álbum pós-Miami, é um desastre, o momento “banheira de azeite” dos Doors. A profunda crise em que a banda estava mergulhada extravasara para dentro do estúdio. Se antes Jim já estava cansado do espartilho redutor de rock star e sex symbol, a sua nova condição de presa favorita do circo do poder deita-o ainda mais abaixo. Jim refugia-se na poesia, no cinema e no álcool (a sua eterna drug of choice), desinvestindo na música. Robby Krieger foi forçado a preencher este vazio, escrevendo metade das canções. Soft Parade não é um álbum, são dois: um do Krieger, outro do Morrison, sem vasos comunicantes entre si. As canções de Morrison, com excepção do acidente “Easy Ride”, não o envergonham: “Shaman’s Blues”, “Wild Child” e “Soft Parade” são três grandes malhas. O problema surge com as canções do Krieger, baladas melosas sem qualquer vitalidade como “Tell All the People” e “Touch me”. Como se não bastasse, Paul Rothchild tem a brilhante ideia de embrulhar as canções em orquestrações barrocas: até as teclas de Manzarek, em regra tão cheias e sonantes, mal se ouvem de tão soterradas que estão por debaixo de camadas redundantes de sopros e cordas. O disco que era suposto ser o Sgt. Pepper dos Doors – com o seu investimento de mais de 80 mil dólares e os seus intermináveis nove meses de gravação – tornou-se afinal o seu Titanic. As más críticas que o disco recebeu então foram inteiramente justas.
De orgulho ferido, os Doors lançam em Fevereiro de 70 um disco de raiva: o enérgico Morrison Hotel. A saída de emergência era afinal surpreendentemente simples: fazer um anti-Soft Parade, mandando a orquestra às urtigas e regressando ao som cru e rock and roll das suas origens. Para que não houvesse qualquer dúvida em relação ao novo mood, o disco arranca com o riff explosivo de “Roadhouse Blues”, a banda-sonora perfeita para andar à tareia em bares ou para atropelar esquilos a duzentos à hora. A funky “Peace Frog” é uma das poucas canções políticas que nos dão vontade de dançar. A última faixa, “Maggie M’Gill”, estabelece já o tom bluesy para o disco seguinte. Os Doors tinham voltado à boa forma.
Segue-se L.A. Woman, nas prateleiras em Abril de 71. Não é irrepreensível como The Doors e Strange Days: em contrapartida é muito mais comovente. Gravado poucos meses antes de Jim morrer, tudo nele tem o sabor salgado de uma despedida. Quando Morrison soube que a Janis Joplin tinha morrido (poucos dias depois de Jimi Hendrix), disse, perturbado, aos seus amigos: “Estão a falar com o número 3”. O balanço existencial feito na melancólica “Riders on the Storm”, a terna homenagem à sua cidade em “L.A. Woman”, o desabafo magoado em “Been Down so Long”, tudo neste disco sugere que Jim tinha já perfeita consciência que não duraria muito. A produção descontraída – assinada por Bruce Botnick e pelos próprios Doors, e gravada quase ao vivo no ambiente confortável de uma sala de ensaios – só acentua a autenticidade deste disco, talvez o mais acarinhado pelos fãs.
Ainda L.A. Woman estava na fase de misturas quando Jim se despede da banda e parte para Paris com a sua namorada Pamela Courson. Em 3 de Julho de 71 a sua eterna obsessão chega por fim: Pam encontra Morrison morto na banheira. Como nunca foi feita autópsia, e mais ninguém viu o corpo, muitos acreditam ainda hoje que Jim está vivo algures. Os Doors sobreviventes ficaram tão atarantados com o desaparecimento de Jim que fizeram dois grandes disparates: Other Voices em Outubro de 71 e Full Circle em Julho de 72, dois discos hereticamente assinados como Doors. Em 73 fazem por fim o luto e acabam oficialmente a banda. Começa então o mito.
Jim pedira em “When the Music’s Over” para cancelar a assinatura para a sua ressurreição mas ninguém atendeu ao seu pedido. Em 78, Jim – o ressuscitado – declama a sua poesia em American Prayer. Em 79, “The End” é a canção escolhida para espelhar o horror da guerra em Apocalypse Now. Surgem depois uma série de registos ao vivo importantes: Alive, she Cried em 83; Live at the Hollywood Bowl em 87; e a compilação Doors in Concert em 91. No mesmo ano, é a vez de Val Kilmer dar nova vida a Morrison no ecrã. Em 2009 surge o documentário When You’re Strange, narrado por Johnny Depp. Cada um destes documentos cumpre uma função: fazer renascer para as novas gerações o extraordinário mito do rei lagarto. A música dos Doors é eterna.
No outro dia vi em Arroios um velho de longos cabelos brancos a enrolar um joint tão fininho que até dava para palitar os dentes com ele. Quase juraria ser o velho Jim…