Ontem, os Black Angels trouxeram-nos transe, vício e rock’n’roll. A beata Lisboa estava a pedi-las…
A digressão europeia dos Black Angels começou no sítio certo, em Portugal – a partir daqui, é sempre a descer. E já que começámos chauvinistas, acrescentemos que tudo aconteceu na capital do império, em tempos, estendendo-se de Minho a Timor, ontem, espraiando-se entre Lisboa e Austin, Texas. Pessoa estava enganado (é do bagaço), que se lixe a língua portuguesa, a nossa pátria é o rock’n’roll.
O pretexto foi dar a conhecer o novo disco Wilderness of Mirrors, lançado em Setembro do ano passado, mas só agora mostrado como deve ser à velha Europa: em frente a um palco, com uma cerveja na mão esquerda, e um joint na direita, que a abstinência não rima com neopsicadelismo (ácidos, nem vê-los, a vida está cara). E levaram mesmo à letra a sua condição de anjos negros, só víamos as suas silhuetas a contraluz, sombras chinesas com sotaque texano. Tudo porque nas suas costas eram projectados vídeos alucionogénicos, qual performance dos Velvet na Factory do Warhol, ou não fossem eles fanáticos pela trupe do Lou Reed, desde o próprio nome (roubado ao “Black Angels Death Song” do disco da banana), até ao logotipo (um negativo estilizado da Nico). Há quem jure que trautearam a “All Tomorrow Parties” mas confessamos que não demos conta. Quem se lembra não esteve lá.
Foi bom degustar o psicadelismo negro e cínico dos Black Angels, mais “bad trip” do que “summer of love”, como convém hoje num mundo enlouquecido. O frontman Alex Maas estava irreconhecível, um gorro no lugar do costumeiro boné, o coitado do homem estava mesmo com frio. Os preciosistas queixaram-se da voz menos límpida, carpindo saudades do límpido estúdio, quisessem clareza ficassem em casa. O seu bonito timbre andrógino resiste ao microfone comprado na Toys’R’Us. A dieta à base de cogumelos e mescalina explicará o travo feminino, Maas olhando-se no espelho e vendo quiçá a Joana D’Arc (não se metam na droga, miúdos, o rum faz melhor).
E os rezingões continuaram a ladainha, “há detalhes em estúdio que não passaram para o palco”, afirmaram no seu tom doutoral. Oh, meus amigos, rock’n’roll não é ballet, quer-se sujo e imperfeito, serve-se perigoso e visceral. Tudo aquilo que os Black Angels foram na noite passada, o fuzz espesso como borras de café, a bateria frugal e rija e viciosa, entre os Jesus and Mary Chain e os Black Rebel Motorcycle Club (enorme a Stephanie Bailey, atraindo o olhar dos machos depravados, e retribuindo com gasolina e atitude: estão a levar uma biqueirada não tarda!).
Acusam os Black Angels de serem retro, como se o revivalismo fosse uma doença venérea. É verdade que o “The End” dos Doors foi parafraseado, e que os – também texanos – 13th Floor Elevators foram saqueados à bruta. Não negamos a ocasional entoação à Ian Curtis, nem os drones – obsessivos e hipnóticos – a meio caminho entre os Hawkwind e os Sleep. Admitimos que o seu caldo de fritaria psicadélica com texturas shoegaze deverá alguma coisa aos Spiritualized. Mas mesmo com todos estes assumidos furtos, os ingredientes são tantos, e tão entrelaçados, que o conjunto acaba por ser original (com uma identidade forte, uma assinatura estética). Podemos ter acordado hoje com a bomba de Hiroshima a rebentar-nos na cabeça – esquecemo-nos de beber água outra vez! – mas mesmo assim valeu bem a pena. Ninguém no mundo é igual aos Black Angels. E nós estivemos lá para vos contar.
Fotografias: Rui Gato