A música tem os seus deuses, como bem sabemos, e por vezes esses seres, incomensuravelmente superiores a quaisquer outros, fazem-nos o favor de se unirem para que o verdadeiro paraíso desça à terra. Nessas alturas, aqueles que professam essa religiosidade sentem-se ainda mais abençoados do que é seu costume. Resultado? Perdem algum tino e esgotam todos os elogios que conhecem quando sobre eles (e sobre o encontro deles, como é o caso) têm de redigir um texto a propósito. Tudo isto é ainda muito pouco para início de escrita sobre Caetano Veloso e Gilberto Gil – Dois Amigos, Um Século de Música, mas vai já dando o tom para o que aí vem. Aliás, o desempenho dos dois amigos baianos neste duplo disco ao vivo (com dvd incluído) está para além de todos os encómios possíveis, até porque eu, humilde cativo das suas carreiras, vivo com ambos na cabeça há mais de trinta anos, o que, convenhamos, vai sendo um número difícil de ignorar. Vivo e venero os dois, embora o podium maior do meu particular olimpo émepêbista tenha Caetano Veloso como incontestável protagonista. Feita esta introdução, resta-me agora limar a vontade que tenho de dizer que este é um disco como nenhum outro, rodela (dupla) mais que perfeita, obra suprema de quem supremamente se instalou em mim e nos ouvintes de bom gosto da melhor expressão musical brasileira. Sigam-me, então, para não caminhar sozinho nesta procissão.
Se somarmos todas as canções deste álbum chegaremos à conclusão que o que temos em mãos é história pura. Mais: a maior parte destes temas fizeram (e fazem ainda) parte das vidas de milhões de pessoas, e por isso já há muito que não são, apenas, simples canções. São hinos, são monumentos sonoros de interesse mundial, lendas vivas que teimam em manter de forma intacta a matéria imaterial de que são feitas: o génio mais que perfeito! Vejamos se não concordam com o que digo: “Coração Vagabundo”, “Tropicália”, “Sampa”, “Terra” ou “Desde Que O Samba É Samba” (todas compostas por Caetano Veloso), mas também “Back In Bahia”, “Eu Vim Da Bahia”, “Super Homem (A Canção)”, “Esotérico” ou “Expresso 2222”, (estas de autoria de Gilberto Gil) são apenas dez exemplos dos vinte e oito disponíveis em Caetano Veloso e Gilberto Gil – Dois Amigos, Um Século de Música. O lote total das canções aqui apresentadas no formato voz e violão é impressionante, não somente por serem marcos históricos da canção brasileira dos séculos XX e XXI (os temas “Odeio” e “Não Tenho Medo Da Morte”, por exemplo, são já deste nosso século), mas sobretudo por nos darem uma igualmente impressionante dimensão do tempo em que foram feitas. Ou, explicando melhor, mostram-nos que as carreiras de ambos os artistas são de tal maneira extensas e recheadas, que através delas (e das canções escolhidas para este concerto) atravessamos a história do Brasil. Há aqui temas anteriores ao início da Tropicália (“É De Manhã” e “Coração Vagabundo”), temas do movimento tropicalista (“Tropicália”, obviamente, mas também “Marginália II” ou “Domingo No Parque”), bem como dos períodos pós-tropicalistas, e da bossa nova. E há, ainda, um tema inédito, composto por ambos durante a já longa digressão mundial do show. Refiro-me ao saboroso samba “As Camélias Do Quilombo Do Leblon”, cuja preciosa letra evoca, simultaneamente, a luta pelo abolicionismo no Brasil e a luta contra a segregação e a opressão do povo palestino. O jogo de palavras entre “Leblon” e “Hebron” é revelador daquilo que afirmo. Este tema é também importante porque marca o encontro criativo dos dois músicos, que já não compunham em conjunto desde o longínquo Tropicália 2, álbum de 1993.
O show Caetano Veloso e Gilberto Gil – Dois Amigos, Um Século de Música vai permitindo, enquanto acontece, que o génio das estrelas em palco vá brilhando alternadamente, numa espécie de ping-pong entre os “amigos irmãos”. A primazia cabe a Caetano, depois curva para Gil, e o peso dos artistas acaba, como não poderia deixar de ser, por se mostrar equilibrado. É mais do que evidente o conhecimento mútuo de ambos, o que mostra também que o show está muitíssimo oleado. Tudo funciona lindamente, desde a escolha do vasto repertório até às prestações interpretativas, sendo que o destaque vocal pende para Caetano, e o instrumental para Gil. Uma vez mais, o equilíbrio.
Caetano Veloso e Gilberto Gil – Dois Amigos, Um Século de Música é um acontecimento! Ouvir e ver o que nele vem é puro prazer! Estes dois super-homens salvam-nos, uma vez mais, da modorra dos dias. Por isso, e também por tudo o que nos deram ao longo destes dois últimos séculos, a minha vénia absoluta, o meu total agradecimento. Saravá, mestre Caetano! Saravá, mestre Gil!