Foram encontradas gravações de dois concertos do Zeca (um em 1968, outro em 1980), agora publicadas pela Tradisom. Estas gravações amadoras não foram pensadas para registo fonográfico, pelo que têm mais valor histórico do que estético. Mas a sua fraqueza é também a sua força: têm uma autenticidade arrepiante. Parece que estamos também lá em Coimbra e Carreço, espreitando a história do mundo a acontecer.
No seu último concerto em Lisboa, documentado em Ao Vivo no Coliseu, Zeca despediu-se de nós com o célebre verso: “Água das fontes calai, ó ribeiras chorai, que eu não volto a cantar”. Mentiu-nos. Graças à recente descoberta de duas gravações inéditas – recolhidas por amadores e agora recuperadas digitalmente pela Tradisom – Zeca voltou a cantar para nós. Para nossa sorte, doze anos separam os dois documentos, captando estéticas e momentos históricos muito distintos, o que nos ajuda a compreender um pouco melhor a vida e a obra de José Afonso. O concerto de Coimbra aconteceu em 1968, ainda Salazar estava no poder, e apanha Zeca na transição das baladas para uma linguagem mais livre e melódica. O concerto de Carreço ocorreu em 1980, sendo uma mistura de ressaca pós-PREC com maturidade estética. Examinemos estas duas preciosas relíquias.
O calendário diz “4 de Maio de 1968”, o sítio é Coimbra. Zeca atravessa um período difícil. Desde que, em 1963, se atrevera a chamar os vampiros pelos nomes nunca mais o regime largou o osso. Em 1964, vai para Moçambique reencontrar-se com a sua família, mas a sua posição abertamente anti-colonialista traz-lhe novos dissabores. Em 1967, não lhe resta outra hipótese senão regressar à metrópole.
Retoma o ensino e continua a “acordar a malta” através das suas canções, especialmente em colectividades da margem sul. A PIDE não gosta, apertando-lhe cada vez mais o cerco. As noites de insónia adensam-se e os nervos acabam por ceder. Em Dezembro de 1967, é internado numa Casa de Saúde, na sequência de um esgotamento nervoso. Quando finalmente regressa a casa, fica a saber que fora expulso de vez do ensino público. É um rude golpe, não só porque adorava a docência – no seu estilo heterodoxo à “Clube dos Poetas Mortos” – como também pela penúria económica para a qual é atirado.

Da parte do Estado Novo, é um desajeitado tiro no pé. Até então a música era para Zeca uma actividade amadora, secundária à docência. Com a expulsão, não lhe resta outra alternativa senão a de viver das canções, dedicando-se com mais afinco a um ofício bem mais incómodo para o regime.
Em 1968, o Estado Novo está… velho. Um dos sinais de crise é a contestação crescente dos jovens universitários – a futura elite do país. Em Coimbra, a oposição movimenta-se nas sombras, o gérmen da crise académica do ano seguinte. O convite a Zeca Afonso para a Queima das Fitas não é inocente.
É um sábado chuvoso mas ninguém arreda o pé: o Teatro Avenida está à pinha. Zeca e Rui Pato jogam em casa: um formou-se em Coimbra, o outro para lá caminha. Mas o estado de espírito de José Afonso é ainda frágil, e isso nota-se no tom cabisbaixo da sua voz quando fala. Mas Zeca não é de se vergar facilmente. E como um sinal de força contra o regime, nada como começar o espectáculo com a “Menina dos Olhos Tristes”, um poderoso lamento contra a Guerra Colonial.

Não sabemos como é que este tema passou no crivo da censura. A balada – com música de José Afonso e poema de Reinaldo Ferreira – já havia sido gravada por Adriano em 1964, sendo então proibida. No concerto de Coimbra, Zeca canta “senhora dos olhos tristes” em vez de “menina”. Seria um estratagema para fintar o lápis azul?
Os arpejos dolentes da viola de Rui Pato dão ainda mais tristeza a esses olhos. E as circunstâncias históricas ampliam o momento: para muitos dos estudantes ali presentes, a guerra não é uma longínqua abstracção mas sim o destino a bater-lhes ao postigo. Imagine-se a comoção e o estremecimento…
A “Menina” define o tom soturno que domina o concerto: muitos acordes menores, muito silêncio e dor na voz (um espelho de tempos muito cinzentos). São as chamadas baladas, uma dissidência do Zeca contra o seu fado de Coimbra, ousando prescindir da guitarra portuguesa – ó blasfémia! –, e ancorando a sua voz apenas na bonita viola de Rui Pato. Quando o nacional-cançonetismo, então dominante, tinha toda aquela pompa orquestral, a austeridade das baladas era mais do que bem-vinda.

Mas nem só de baladas chorosas vive o concerto de Coimbra. O que é muito interessante neste documento é que capta a música do Zeca em plena transição da fase baladeira para uma linguagem mais contemporânea, emancipada do romantismo coimbrão e com maior imaginação melódica. Só com esta última transformação é que a moderna música popular portuguesa está totalmente formada. E agora, graças à presente edição, temos um registo fonográfico que capta o seu nascimento.
Cantares do Andarilho só seria publicado no Natal desse ano – com a chancela da Orfeu de Arnaldo Trindade –, mas Zeca aproveita para destapar um pouco do véu em Coimbra. É assim inaugurada a sua fase franciscana, namorando com o arquétipo da solidão na montanha, fascinado pelo Cristo revolucionário dos filmes do Pasolini. São canções alegres, cheias de vivacidade, como “Natal dos Simples” e “Chamaram-me Cigano”, oferecendo um justo contraponto à melancolia das baladas. A sua veia de melodista – uma das suas maiores virtudes – vem, por fim, ao de cima. Porém, o corte estético com as baladas ainda não é total, permanecendo a instrumentação sóbria, confinada à viola de Rui Pato.
Zeca quase não fala entre as canções, não o poderia. A PIDE está presente, e bastaria uma palavra mal medida para o concerto poder ser cancelado. Não faz mal, as suas canções falam por si, e Afonso guardou um trunfo para o fim. Impedido pela censura de cantar os habituais hinos de resistência – “Vampiros”, “Menino do Bairro Negro” e “Ronda dos Paisanos” – nada como driblar a censura com um tema então inédito. Falamos de “Cantar Alentejano”, comovente homenagem à mítica Catarina Eufémia. “Quem viu morrer Catarina não perdoa a quem matou”, canta Zeca com a sua voz magoada. Silêncio. O concerto acaba. Adivinhamos muito calafrio a percorrer aquelas espinhas…
No relatório redigido pela PIDE dois dias depois, há referência à subversiva “Menina dos Olhos Tristes” mas nenhuma menção a “Cantar Alentejano”. Aparentemente, o venerável inspector não faz a mínima ideia de quem seja Catarina.

Subamos agora para Carreço, aldeia à beira-mar a norte de Viana de Castelo. Mas demoremos doze anos na viagem, de maneira a lá chegarmos a 23 de Fevereiro de 1980. Encontramos Zeca por lá, prestes a começar um concerto na Sociedade de Instrução local. Ali, numa pequena terreola longe dos grandes centros urbanos, percebemos logo: Zeca sente-se em casa.
Volvidos doze anos, o que há agora de diferente?
Não há PIDEs a vigiar na sombra, nem baladas tristes sobre soldadinhos, que, entretanto, acontecera uma coisa bonita chamada 25 de Abril.
Houve também o 25 de Novembro. Ora, para quem, como o Zeca, sempre lutara contra o fascismo, sonhando com uma sociedade “sem oprimidos e opressores”, a “normalização democrática” traz o travo amargo da desilusão. Diga-se, aliás, que os sentimentos são recíprocos, pois para um regime cada vez mais “modernaço” e europeizado, a voz contestatária do Zeca começa a tornar-se incómoda. As suas canções não são proibidas, que agora são tempos de liberdade, mas um estranho passo de mágica fá-las desaparecer da rádio e da televisão. Mudam-se os tempos, permanecem as vontades: se Zeca era incómodo antes do 25 de Abril por criticar o Deus-Pátria-Família, incómodo continua nos anos 80 por maldizer o deus capitalismo.

Zeca não baixa os braços, nunca os baixou. Continua comprometido com os seus objectivos de sempre: “agitar a malta”, resistir ao poder. O espectáculo de Carreço nada tem a ver com a promoção de uma carreira, que sempre desdenhou. Aliás, só após muita insistência de Júlio Pereira é que concedera – no ano anterior – em ser acompanhado por uma banda fixa, a profissionalização possível num artista que sempre recusou o culto da personalidade e a frivolidade do vedetismo. Carreço tem já esse luxo: Henrique Tabot na viola, Guilherme Inês nas percussões, Júlio Pereira no cavaquinho e no que mais apanhar à mão. É aproveitá-lo.
Se os seus discos têm objetivos estéticos autónomos, em grande parte libertos de qualquer função social, como demonstram as suas inclinações surrealistas, os seus concertos têm, acima de tudo, objectivos políticos e didácticos. Por isso, não estranhamos que no concerto de Carreço as suas longas intervenções faladas sejam quase tão importantes como as canções que se lhe seguem. Para Zeca, um concerto é, acima de tudo, um hábil pretexto para “empurrar a malta”. Por isso, faz questão de denunciar o machismo, a corrupção no regaço do poder, a cumplicidade no norte do país entre a Igreja e a direita mais reaccionária, a pobreza e a exploração que ainda persistem. O 25 de Abril, afinal, faz lembrar um célebre filme de Visconti: foi preciso mudar tudo para que tudo igual ficasse…
E que canções Zeca nos mostra agora? Recordemos que nos doze anos que separam Coimbra de Carreço muita música passou por debaixo da ponte.

Em 1969, Zeca aprofunda a ruptura com a balada, acrescentando toda uma palete de novos instrumentos, na sua última colaboração com Rui Pato (Contos Velhos, Rumos Novos).
No período compreendido entre 1971 e 1974, Zeca atinge a sua maturidade lírica e musical, gravando quatro álbuns perfeitos: Cantigas do Maio (1971), Eu Vou Ser Como a Toupeira (1972), Venham Mais Cinco (1973) e Coro dos Tribunais (1974). O que estava apenas em gérmen na fase anterior, encontra agora terreno fértil para se desenvolver: o leque de instrumentos é vasto; a direcção musical é sofisticada; os ritmos africanos são desenvolvidos; o nonsense é assumido. Quando toda a esquerda bem-pensante seguia a cartilha neo-realista, Zeca mandava Alves Redol para as urtigas, aventurando-se pelo surrealismo. José Afonso era assim, avesso a toda a espécie de amarras, fossem estéticas ou ideológicas. “Eu sou o meu próprio comité central”, dirá um dia, certeiro.
Em 1976 e 1978, grava os seus discos mais abertamente políticos: Com as Minhas Tamanquinhas e Enquanto Há Força. Os álbuns podem ser mais pobres liricamente, colocando a luta política à frente das preocupações poéticas, mas por mais panfletárias que sejam as letras há sempre uma inteligência e um humor muito especiais a iluminá-las. Do ponto de vista musical, são álbuns de uma riqueza rítmica sem precedentes – o legado africano no seu auge.

Em 1979, regressa à pureza da música tradicional, numa colaboração crescente com o teatro: Fura Fura.
Chegado a 1980, retorna às suas origens, estando na forja um disco só com canções coimbrãs (Fados de Coimbra e outras Canções, 1981). Sabemos que Zeca reinventou a música popular portuguesa a partir da ruptura com o fado de Coimbra. Vinte anos volvidos, sente-se finalmente à vontade para se reconciliar com as suas raízes.
Ora, o alinhamento do concerto de Carreço faz uma síntese equilibrada de todo este percurso. Está lá tudo: o melodismo de “Mulher da Erva”; os ritmos africanos de “O Homem Novo Veio da Mata”; o regresso a Coimbra de “Amor de Estudante”; e, como veremos abaixo, as colaborações com o teatro e a divulgação da música tradicional portuguesa.

Três temas do concerto – “As Sete Mulheres do Minho”, “Quem Diz que é pela Rainha” e “O Cabral fugiu para Espanha” – foram escritos para a peça de teatro “O Zé do Telhado” (de Hélder Costa). Nestas canções, Zeca encontra paralelismos entre os tempos de Costa Cabral e de Maria da Fonte (1846) e a actualidade de então, no rescaldo da primeira intervenção do FMI em Portugal (1977). Se os somarmos aos temas que Zeca e Fausto farão mais tarde para a peça “Fernão mentes?” – gravadas, respectivamente, em Como se Fora Seu Filho e Por Este Rio Acima –, encontramos um padrão: no fim dos anos 70, e início dos 80, houve um grande interesse dos artistas à esquerda em explorar a história de Portugal. Não será certamente por acaso. Quando o presente era tão sombrio, com a ressaca dos sonhos traídos de Abril a bater mais forte do que nunca, é natural que esta malta tenha procurado refúgio e alento na revisitação do nosso passado. Zeca não mostra, porém, desencanto. Resistir é sempre outra forma de vencer.
No que diz respeito à difusão da música de raiz portuguesa, o concerto de Carreço é um autêntico serviço público. Zeca explica numa das suas intervenções a sua posição sobre o assunto. Acusa a televisão portuguesa de se entreter em festivais “eurovisivos”, descurando o seu papel de transmissão da cultura popular. Não padecerá da mesma miopia. No alinhamento, tem a preocupação didáctica de divulgar a música tradicional de várias regiões do país: a alegria minhota de “As Sete Mulheres do Minho”, os ritmos beirões de “Venho de Macelada”, e até o fado corrido, bem alfacinha, de “Quem diz que é pela rainha”.
Há rigor mas não purismo nestas recolhas. Mais de que um etnomusicólogo, Zeca é um criativo, pelo que lhe interessa reinventar a tradição. Veja-se o caso de “Se Voaras Mais ao Perto”, onde a música popular portuguesa se mistura agora com ritmos africanos. Muito antes de Paul Simon e David Byrne explorarem a world music, já Zeca enfiava o Minho em Xepengara. A sua obra foi sempre assim: a mais ancestral tradição, piscando o olho à mais vanguardista modernidade.
Afinal de contas, foi esse o seu grande legado: manter a chama da tradição acesa. Enquanto houver gente a ser inspirada pelo seu génio melódico e pela sua referência humanista, Zeca Afonso viverá.
Nota: Este texto foi publicado originalmente no livro-disco “José Afonso ao Vivo”, editado pela Tradisom.