Cedo acordo para um Sol sensível, um raio a despoletar de cada vez e outra vez, feixe atrás de feixe, a luz das frechas do estore a atravessar-me como um punhal bom. Os primeiros segundos do dia são os melhores. Aqueles imediatamente antes de percebermos que há dia, antes de percebermos que há mais umas dolorosas 16 horas pela frente. Mas já ganhámos o dia com o Sol. Toca o despertador, pelos vistos acordei antes dele – ciclos de sono bem acabados, como a estrela da manhã.
É a rotina de sempre, pra quê recontá-la. Fecha-se a porta, abre-se a do elevador, não acredito que o tempo existiu mais rápido que eu, já ouço o motor do autocarro. Ainda tenho tempo pra correr para a próxima paragem, siga. Pronto, acomodado e ofegante já posso pegar nos auscultadores. Filhos da mãe, sempre com os fios todos enrolados em nós de cobre e borracha, curvas e curvas, manifestações do meu desleixo eterno. Pra quê desentrelaçar se amanhã vou ter de repetir?
Saio do autocarro e passo naquele espelho de sempre que a estação de metro tem, pra ver quão mal me deixou a pressa, quão grave foi o murro do capitalismo nesta manhã específica. Agora já posso ir com calma, a passo de “Tartaruga”, esperar o metro, ver o dia já a acontecer lá fora, os carros na autoestrada, nem sei se me acalma se me transtorna. Bem, ao menos há sempre a satisfação de ver o “Pessoal Beto Em Sítios Chungas – que delícia, aquela linha, ver os betolas incomodados é um prazer, um deleite.
Olha, entretanto cheguei. Mais uma aula. Bolas, mais outra sessão de duas horas a ouvir a mulher a papaguear. Se ao menos papagueasse para “A Tia Dela” em vez de nos infernizar, às duas vezes por semana, naquela parte do dia que define o estado de espírito para todas as outras. Fazer bonecos no caderno, como o Tino de Rans, ver as fotos que a miúda me mandou pela net e tudo seria melhor se os LEDs do ecrã do telemóvel se materializassem naquela sala e que tudo o resto fosse escuridão. E imagino como seria isso, o real eclipsa-se, saio de mim e entro no túnel da imaginação só a pensar nela, nos seus contornos e no seu interior. Faz de mim o que quer, ela. Ora me sinto o grande “Tritão” ora um pequeno tritão, ora sou o deus dela ora ela me espezinha sem dó. Bem, parece que a aula está para acabar. Pelo menos o cheiro do almoço já vem lá de baixo. Cheira outra vez àquele prato de peixe nefasto, com aquele molho laranja que me faz pôr tudo em causa.
Claro que chego ao bar e não há ninguém à vista. Se é de mim ou do peixe, não sei. Sento-me naquele recanto de sempre, aquela música soa na minha cabeça e faço uns batuques na mesa, trauteio umas notas, vejo o prato do dia. Ei-la, “Truta Salmonada” outra vez. Quem é que se lembra de chamar a um prato “truta salmonada”? Dava um bom nome para uma canção, ainda assim. Ta…ta…ta ta…ta…ta ta. Uma guitarra eléctrica no limiar entre o limpo e o distorcido a rasgar um riff em que se toca rápido o suficiente para não se distinguirem as cordas e só se ouvir um único som, seis cordas feitas um só cantar. A tarola, ao mesmo ritmo, solta-se no final do conjunto de compassos e o ré menor despedaça-se em cinco arranhões. Dó, ré, mi, sol, solarengo – esquece, diz-se soalheiro, mas chega pra me lembrar da “Estrela E Acabada” mais uma vez. Mais umas horas disto e vou dormir, depois voltar a senti-la, atravessando as frinchas da vida como só ela sabe. É uma tormenta não a poder ter sempre. Mas é a Tormenta que nos faz andar. E que boa tormenta.