Há uns anos, antes da Kim, do Twitter, dos ténis e de outros milhares de pedaços de folclore kanyewestiano, tudo era mais simples. Numa altura em que o hip-hop estava afastado dos vários milhões que hoje se afirmam fãs devotos, apareceu um rapaz de Chicago que queria fazer as coisas de maneira diferente. Apareceu Kanye West.
Pegando em retalhos de grandes clássicos do soul e do jazz negro e associando-os, no início, a batidas simples, este rapaz – que não foi discípulo de Madlib mas podia ter sido – pegou em tudo o que tinha e fez um acordo com o Diabo. A sua alma pelas capacidades indispensáveis para se ser a figura maior do género musical dos NWA, de Dr.Dre e de Tupac.
Durante os primeiros anos, quando tudo na vida do Mr. West garantia um mínimo de sanidade mental e emocional, o acordo feito não podia ter sido mais vantajoso. De uma forma impressionante, Kanye ia conseguindo elevar este género musical “sub-urbano” à categoria de arte. Rimas inteligentes, profundas, que tratavam assuntos pertinentes e socialmente relevantes aliavam-se na perfeição com um som novo, fresco e poderoso. Quase sem querer, traçava os contornos do hip-hop que hoje move milhões. Agora as coisas são diferentes.
Depois da mãe ter falecido, Kanye entrou numa espiral esquizofrénica de disparates que parecem aumentar a cada segundo. Essa instabilidade associada ao peso das luzes da ribalta fizeram-no duvidar do seu potencial, trouxeram ao de cima insegurança, medo de falhar, ou de perder o comboio que agora tem Kendrick Lamar como condutor. Isto começou a sentir-se com 808s & Heartbreak (2008) e foi piorando em My Beautiful Dark Twisted Fantasy (2010) e com Yeezus (2013). Apesar da loucura se sentir nas versos egocêntricos e dissociados da realidade destes álbuns, Kanye conseguiu aguentar-se, mantendo o mesmo ritmo de inovação que o caracterizou no início. Em The Life of Pablo (TLOP), o seu novo álbum, a fasquia continua altíssima, mas um fim desastroso começa a aparecer.
O novo disco começa com “Ultraligh Beam”, um magnífico exemplo da força de West. Somos transportados para 2004/05 (época de ouro do rapper) numa carruagem feita de nuvens e iluminada por algo maior. O beat pesado fica mais leve com os incríveis coros e segundas vozes que dão a pitada de gospel característica de West. Chance The Rapper – o mais promissor rapper da actualidade a seguir a Kendrick – compõe o ramalhete. Este é o primeiro ponto alto do disco. “Father Strech My Hands” pt.1 e pt.2 mantêm a onda gospel mas com elementos electrónicos que mais para a frente se materializam numa clara aposta no trap. Segue-se “Famous” que começa com Rihanna a cantar Nina Simone e acaba com um trecho alegre (o mais alegre das 18 músicas do disco) com um sample de Sister Nancy. Estamos perante outro ponto alto do disco – abençoado seja o flow hipnótico e pausado de Kanye. “Feedback” é a primeira power track do disco. No início, sente-se alguma discordância entre a métrica e o beat, mas isso passa. “Low Lights” vem limpar o palato com uma forte voz negra que declara o seu amor por alguém. “Highlights” segue-se e somos de novo catapultados para o passado, para 2007, para ser mais preciso, ano em que o álbum Graduation aterrou. “Freestyle 4” é a música favorita de Tyler The Creator e percebe-se porquê – boa dose de loucura com um beat minimal e aguçado. Gostamos de “I Love Kanye” (a música que se segue) como o Kanye gosta do Kanye. “Waves” é pirosa, mas “FML” compensa. Ouve-se um Mr. West sincero, mais uma vez pleno de electrónica por trás. Maravilhosa a transição da música para uma versão distorcida da voz de Kanye – Stephen Hawking teria inveja. A corrente segue o mesmo estilo na música que se segue, “Real Friends”. Em “Wolves” voltamos a chegar perto do céu montados numa música onde agudos toques vocais contrastam com a “autotuneada” voz de Kanye. “30 Hours”, “No More Parties in LA” mantêm-se fortes, fazendo desta a melhor etapa de TLOP. A mimada e egocêntrica “Facts” estraga um bocado, mas “Fade”, que se segue, compensa. Hipnótica sucessão de beats simples, curtos, mas precisos. E chega ao fim a vida de Pablo.
Olhando para este polémico trabalho num todo, torna-se claro que a esquizofrenia patológica de Kanye West está a ficar cada vez mais acentuada. TLOP é muito bom, mas completamente despido de conceito. Vemos uma pessoa que está perdida entre aquilo que sabe ser correcto e aquilo que a sua arrogância e insegurança o fazem fazer/dizer. Isto é um pedido de ajuda de alguém que se sente perdido.
Neste disco, Kanye mantém a qualidade inquestionável da sua produção musical mas revela coisas que, noutro contexto, poderiam ser encontradas no diário de alguém que se sente enfiado num buraco, alguém que se sente sozinho. É verdade que diz muitas coisas ridículas, ofensivas até, mas se não fosse ele a dizê-las (sim, porque misoginia, por exemplo, não é só característica dele, prestem atenção a Kendrick Lamar, Action Bronson, Freddie Gibbs, Earl Sweatshirt, etc..) não apanhava tanto na cabeça.
Como fã deste que considero um dos pais do hip-hop contemporâneo, custa ouvir. Ver a queda de um ídolo é sempre difícil. Até esse fim chegar, fico a abanar a cabeça ao som deste grande TLOP e à procura de qualquer coisa que possa salvar a vida de Kanye West.
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