A estreia dos Blur não foi a mais auspiciosa. Apesar de estar vários milhões de anos-luz acima de qualquer álbum dos U2, Leisure é apenas o melhor dos discos assim-assim. Os seus singles são uma delícia, mas há falta de sal em muitas das canções. Mais grave do que isso; por pressões da editora e imaturidade da banda (tinham então pouco mais de 20 anos), o primogénito dos Blur tem pouca personalidade, limitando-se a seguir as modas da altura: muito madchester e alguns laivos de shoegazing. No final de ’91, a banda de Damon Albarn pouco mais é do que um one-hit wonder: «There’s No Other Way» – a melhor canção dos Stone Roses nunca escrita pelos Stone Roses – vendeu que se desunhou.
As coisas pioram quando o burlão do agente dos Blur os deixa endividados até ao pescoço. Para pôr as contas em dia, lá vão eles contrariados para uma tournée pelos Estados Unidos, absolutamente inglória devido à histeria grunge que por lá grassa. Quando regressam ao Reino Unido, já ninguém quer saber deles: não há o raio de um holofote mediático que não esteja apontado para os Suede. Ignorados na América e desprezados em Inglaterra, os Blur passam um mau bocado. Mas nunca se resignam. Com o orgulho ferido, e qual Hitler da pop, o quarteto Londrino abre duas frentes de batalha.
A frente leste chama-se Suede. Damon Albarn é um fulano competitivo. Se em ’95 se medirá com os Oasis na célebre batalha da Britpop, agora, dois anos antes, envolve-se numa mini-contenda com os Suede. Neste primeiro embate, ganha a banda de Brett Anderson: o seu álbum de estreia é número um, ofuscando Modern Life Is Rubbish, que se fica por um tímido 15.º lugar. A passagem do tempo será contudo generosa para os Blur. De derrota em derrota acabarão por ganhar a guerra.
A frente oeste é Miss America, com a horda de bárbaros grunge invadindo a civilização. Desde os anos 80 – muito por obra e graça da sinistra Thatcher – que a cultura de massas americana havia tomado conta da Grã-Bretanha. Agora a americanização do Reino Unido sobe mais um degrau, estendendo-se também ao campeonato indie. É altura de resistir.
A inveja e o ressentimento que Damon nutre por ambos os adversários podem não ser os mais nobres dos sentimentos. Pouco importa. Funcionam como o fuel perfeito para os Blur encontrarem uma voz própria, reinventando por completo a sua identidade. A história da pop agradece.
Na sua canção «Glamorous Glue», Morrissey já tinha feito antes o diagnóstico correcto: «We look to Los Angeles for the language we use / London is dead.» Complementem Los Angeles com Seattle e o retrato estará então completo. Contudo Damon tem a ousadia de ir para lá da cínica fotografia: acredita – contra a opinião de muita gente, inclusive a da própria Food Records – que seria mesmo possível resistir à invasão grunge através da afirmação descomplexada da cultura britânica.
Tudo tresanda a britishness em Modern Life Is Rubbish: a locomotiva a vapor da capa, a pintura a óleo dos Blur vestidos com botas Doc Martens e calças arregaçadas com dobras; o revivalismo mod das melodias; as crónicas de costumes inspiradas nos Kinks. O que é interessante no patriotismo de Damon é que os retratos que pincela da sua amada ilha são essencialmente críticos, sarcasmos impiedosos sobre os vícios da sua classe média fútil e modernaça. O chauvinismo está lá na mesma mas escondido no seguinte subtexto: o Reino Unido, de tão americanizado que está, já não sabe quem é. Fuck Thatcher e a maldita sociedade de consumo que nos descaracterizou.
O álbum de estreia dos Suede pode ter sido o brilhante pontapé de saída de uma cena, mas Modern Life Is Rubbish é muito mais do que isso: é o álbum-manifesto, a bandeira que se ergue alto na batalha com o grunge. Aquilo que antes tinha sido apenas um grito vago da imprensa musical torna-se agora num movimento estético de carne e osso, cujas regras são inteiramente definidas pelo ideólogo Damon Albarn. Nascera a britpop.
Os Blur sempre viveram da tensão criativa entre Damon Albarn e Graham Coxon, duas almas muito diferentes, senão opostas. Damon tem uma sensibilidade essencialmente pop, britânica até à medula, transformando tudo o que toca em melodias certeiras e refrões assassinos. Graham tem uma sensibilidade mais indie, odiando o sucesso e desprezando as canções demasiado certinhas. Em Parklife e The Great Escape (os dois capítulos seguintes do tríptico que catapultou os Blur para o sucesso, mudando por completo a paisagem da pop inglesa), Damon moldou totalmente os Blur à sua imagem e semelhança. Já em Blur e 13, a balança pendeu para o lado de Graham Coxon: dois maravilhos álbuns lo-fi, sujos e anti-pop, muito ancorados no indie americano que ele amava. Ora o que é interessante em Modern Life is Rubbish é que a balança criativa Albarn/Coxon está completamente equilibrada. É esse o mágico segredo deste disco: maravilhosamente pop e melódico como Damon sempre quis, com guitarras sujas, difíceis e imprevisíveis como Coxon sempre desejou.
Pouco importa que Modern Life Is Rubbish tenha vendido relativamente pouco. O disco foi incrivelmente influente, funcionando como modelo para dezenas de outros espalharem a mensagem. No ano seguinte, Kurt Cobain morrerá. Não há coincidências.