Dotado de um groove discreto e de uma elegância prodigiosa, I Will Say Goodbye é a carta de despedida de um sofredor apaixonado pela ilusão de que a vida pode ser tudo menos triste.
Da sobrevivência vem a arte de vencer. Ironicamente, a história do jazz assenta numa questão de sobrevivência. Para quem era roubado da sua existência e ficava prisioneiro das vontades violentas dos ladrões de identidades. Apesar das suas virtudes intelectuais, os seres humanos nunca conseguiram sepultar os seus instintos de dominância irracional. Nessa sede de poder ter cada vez mais, os menos hábeis foram adquiridos para serem usados como coisas. Para ajudarem os ladrões a engordar cada vez mais a sua ganância. É nessa crua demanda que os escravos norte-americanos, vindos maioritariamente do oeste de África, encontram formas de sobreviver ao flagelo da escravatura. Trazem consigo a arte de saber cantar a força e resiliência da sobrevivência. Tornam-se então comuns manifestações grupais, alegradas por música de percussão e canto, à semelhança de ritos e festas das suas tribos de origem. Mas na história do jazz também houve brancos sofredores.
Bill Evans consagrou-se como grande pianista de jazz, não só pelas suas tremendas capacidades de destreza, mas sobretudo pela forma “modal” como abordou a execução das suas melodias, o que lhe dava uma maior liberdade e escolha no improviso. Traduzido para literatura, a música de Evans mistura o classicismo da antiguidade com a exuberância intrincada das composições trovadorescas. É puro jazz, disso não há dúvidas. Mas se Chopin ou mesmo Haydn viajassem no tempo e fossem parar ao Village Vanguard a um sábado à noite em 1961, por certo não estranhariam o facto de, em vez de coches parados à porta, estarem Chevrolets Bel Air e Cadillacs Eldorado.
I Will Say Goodbye, o penúltimo disco gravado por Bill Evans antes de sucumbir ao desgaste da cocaína e da heroína, por momentos aproxima-se de um disco de rock. Forte e intenso, como se espera da consumação de uma obra embebida em sofrimento libertador. O baterista Eliot Zigmund afirma uma presença mais proeminente, concordante com a importância magistral de um registo discográfico de alguém que define de forma tão indelével o peso do piano no jazz pós-bop. Isto, claro, sem esquecer obviamente a entrega absoluta do contrabaixista Eddie Gómez que realiza um trabalho notável neste disco.
Numa entrevista em Helsínquia, Evans sublinhou que o improviso é um factor estruturante na arte de tocar jazz, confessando que a forma como tocava era, para ele, um acto de extrema libertação. Em detrimento da extravagância e vedetismo, o pianista assumiu restringir-se a cenários estéticos pouco avant-garde, utilizando uma linguagem acessível, de expressões compreensíveis, ao contrário de outras correntes mais experimentalistas e imaturas. Para Bill Evans, tinham de existir azimutes convencionais. Pontos de referência que ajudam o artista e o ouvinte a enquadrar a experiência melódica em sensações regulares, ainda que esta possa veicular uma carga emocional exorbitante.
No princípio da sua carreira, chegou a integrar o quinteto de Miles Davis, tendo participado na execução e até composição de alguns temas do mítico registo da Columbia Records, Kind Of Blue. Mas Evans procurava um sentido diferente para a sua carreira. Uma direcção mais transparente. A sua maior intenção era desprender-se do material e ir ao encontro da vastidão intangível do espírito. Ao longo da sua vida compôs cerca de sessenta músicas. Mais que um pianista, ele compunha a simplicidade da sua paixão pelo piano. Bill falava em notas e escalas, talvez com receio de tornar explícito a sua inquietação pela frieza da realidade sóbria. A droga era a sua maior paixão. Depois de passar pelo suicídio da sua primeira mulher, de voltar a entregar-se à adição após um período de abstinência e de por fim sentir o peso da responsabilidade da parentalidade, Bill Evans só não desistiu do piano. Foi o piano que o manteve vivo até o seu corpo não aguentar mais o abandono.
Dotado de um groove discreto e de uma elegância prodigiosa, I Will Say Goodbye é a carta de despedida de um sofredor apaixonado pela ilusão de que a vida pode ser tudo menos triste.
Até sempre, Bill.